Te Dou Meus Olhos (2003): relacionamentos abusivos e a masculinidade tóxica

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readApr 13, 2020

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(Imagem: reprodução)

Há dez, ou talvez mesmo cinco, anos não ouvíamos falar em masculinidade tóxica. Até então, havia apenas uma maneira, estereotipada, de “ser homem” – uma maneira nociva tanto para as mulheres quanto para os homens. Há um pouco mais de tempo, o que ouvíamos era que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” – que não existiam relacionamentos abusivos e que cada um que resolvesse, dentro de casa, seus problemas conjugais. Mas desde antes de estes termos se tornarem comuns no vocabulário online, alguns filmes já discutiam esses assuntos, como o espanhol “Te Dou Meus Olhos”, da diretora Iciar Bollaín.

Não aguentando mais ser abusada física e psicologicamente pelo marido, Pilar (Laia Marull) sai de casa no meio da noite com o filho Juan (Nicolás Fernandez Luna) e procura abrigo na casa de sua irmã, Ana (Candela Peña). O marido, Antonio (Luis Tosar), vai atrás dela, prometendo mudar, ser diferente, mais calmo e carinhoso, mas se descontrola ao ouvir uma negativa de Pilar.

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A mãe de Pilar e Ana não gosta nem um pouco da situação, e diz que Pilar deve fazer as pazes logo com o marido, pois “não há nada pior para uma mulher do que ficar sozinha”. Ao ouvir isso, Pilar se descontrola e joga longe seu vestido de noiva – que a mãe havia trazido para Ana usar em seu casamento. O vestido acaba pendurado entre dois fios de eletricidade, em uma nada sutil metáfora do casamento de Pilar, que também está equilibrado como que na corda bamba.

Pilar arruma um emprego, o que enfurece Antonio. Por que ela precisa daquele emprego como guia turística? Para ficar se exibindo para os frequentadores de igrejas e museus, não interessados em obras de arte, mas sim naquela mulher que está ali à frente? Antonio, além de agredir Pilar física e psicologicamente, também pratica violência econômica e patrimonial, pois não a deixa ter um emprego e, por consequência, impede que ela tenha independência financeira. Mas ele continua falando que vai mudar – e ela parece acreditar.

Antonio passa a frequentar um psicólogo e faz sessões de terapia em grupo com outros homens com problemas conjugais. A iniciativa, porém, não valerá nada se eles não estiverem dispostos a mudar alguma coisa. Na conversa em grupo, o primeiro homem chama a esposa de “histérica”. Outro completa que sua esposa lhe dá motivos para apanhar, então, por que ele está errado em bater? Mais outro diz que espera, ao chegar em casa, comida e sexo, e se descontrola quando a esposa não lhe fornece qualquer um dos dois. Eles não enxergam como suas atitudes são nocivas e ignorantes.

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Aparentemente, esses homens também não estão dispostos a mudar, graças a uma coisa, nunca mencionada mas sempre presente: a masculinidade tóxica arraigada e enraizada tão profundamente que os impede de ver o mundo de outro jeito. Quando o psicólogo pergunta ao grupo que tipo de atividade lhes dá prazer, um deles reponde “pescar em alto mar”, e logo ouve risos dos outros homens, que consideram a resposta dele como “maricas”.

Em mais um exercício, um homem não consegue se colocar no lugar de uma mulher, e não faz esforço para completar o exercício – que pedia apenas isso: empatia. Por saberem que “isso nunca acontecerá, jamais seremos mulheres”, estes homens fincam estacas em sua zona de conforto, e não são capazes nem por um minuto de pensar como o gênero oposto reagiria às ações deles mesmos.

Muitas vezes, ao ser questionado sobre o que sente e o que faz quando se descontrola, Antonio simplesmente responde: “não sei”, repetidas vezes. Ele não está disposto a mudar, a tentar ver o mundo pelos olhos de Pilar, a fazer uma autoanálise que pode ser o começo de uma nova vida a dois. Ele quer o fácil, um relacionamento “normal”, em que ele mande e que saiba sempre onde e com quem a mulher está.

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A terapia, que poderia ser um local para todos aqueles homens descontruírem suas masculinidades tóxicas, aprendidas ao longo de uma vida, de nada adianta porque eles não querem colaborar. Do mesmo modo, Pilar encontra nas novas amigas do trabalho grandes incentivadoras. Curiosamente, o filme “Te Dou Meus Olhos” passa raspando no Teste de Bechdel, pois essas mulheres falam quase sempre sobre homens, e apenas em duas ocasiões conversam entre si sobre trabalho.

Em 2003, quando “Te Dou Meus Olhos” foi feita, não se falava sobre empatia, relacionamento abusivo e masculinidade tóxica. Mas estas questões sempre existiram. Com o tempo, ganharam nome, seus conceitos foram ficando mais conhecidos pela população, e agora podemos falar abertamente sobre essas questões.

Em 2018, nos 15 anos de estreia do filme, a diretora Iciar Bollaín e os protagonistas Laia Marull e Luis Tosar se reencontraram em Toledo, onde ocorreram as gravações, para discutir o impacto do filme. Ambos foram categóricos e pessimistas: a violência contra a mulher continua presente na sociedade espanhola, a mulher continua não sendo levada a sério quando denuncia esta violência, e apenas uma mudança na educação – e na mentalidade – causará algum efeito no combate à violência doméstica. Ainda estamos muito no começo deste debate – mas que bom que o pontapé inicial já foi dado.

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