The Bisexual — série de Desirée Akhavan trata das dúvidas e do apagamento bi

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
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5 min readJun 5, 2021

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(Imagem: reprodução)

O apagamento da bissexualidade é real. No filme “Bohemian Rhapsody”, por exemplo, Freddie Mercury é retratado o tempo todo como um homem gay, e não bissexual. Por isso ficamos com um pé atrás quando começamos a ver “The Bisexual”, uma série que começa com sua protagonista dizendo que a bissexualidade é um mito. Felizmente, esta é uma série de desconstrução: dos espectadores e dos próprios personagens, que carregam preconceitos contra os outros e até contra eles mesmos.

Leila (Desiree Akhavan) e sua namorada Sadie (Maxine Peake) são sócias. Em uma entrevista sobre o negócio delas, o repórter sem-noção pergunta se elas pretendem começar uma família — ao que Leila protesta, dizendo que ele não faria a mesma pergunta para um homem -, como é ser uma mulher num negócio dominado por homens — ao que Sadie protesta — e para completar arranja uma sessão de fotos quase fetichista, com Sadie e Leila se beijando em frente ao computador e uma segurando a outra no colo.

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Isso acontece logo antes de Leila pedir para darem um tempo na relação, pois ela está confusa depois de Sadie pedi-la em casamento. Leila se muda, passando a dividir um apartamento com um escritor e professor, Gabe (Brian Gleeson).

Logo depois de se conhecerem, no primeiro episódio, Gabe vai com Leila até um bar LGBT, e lá ela percebe que secretamente, como acontece muitas vezes, ele apenas deseja que as lésbicas correspondam às suas fantasias — quando isso não acontece, ele as chama de sapatão que odeiam homens.

No segundo episódio, a bifobia de Leila fica evidente quando ela questiona uma amiga sobre a seriedade de sua namorada bissexual dizendo que “é mais fácil se apaixonar por uma mulher”. Ainda confusa, Leila acha que bissexualidade pode muito bem ser uma curiosidade ou “só uma fase”.

No mesmo episódio, ao conversar com um Jon-Criss (John Dagleish), amigo de Gabe com cabelos verdes, Leila desabafa, imaginando como teria sido mais fácil se sua primeira grande paixão tivesse sido um garoto: “Me assumir para os meus pais foi a pior coisa que eu já fiz e eu acho que não teria feito minha família passar por isso se eu pensasse que eu tinha outra opção.”

No terceiro episódio, ao descobrir que ela dormiu com Jon-Criss, Gabe pergunta se ele a transformou em hétero. Leila, indignada, afirma com veemência que só um cara não tem o poder de mudar a sexualidade de uma mulher. Ao mesmo tempo, ela diz a Gabe que não gosta do termo “bissexual”, não apenas por não ter nenhuma celebridade ou personagem inspiradora que se assumiu bi, mas também por bissexual ser associado, pela própria Leila e por boa parte da sociedade, como um sinônimo de vagabunda, promíscua, de quem não é fiel.

Mais tarde, no mesmo episódio, ao conversar com Francesca (Michèlle Guillot), a namorada de Gabe, Leila confessa que lutou muito para se assumir homossexual, por isso não está pronta para “mudar de time”, ou melhor, assumir outra coisa. Francesca, que se define como queer, teve um processo de aceitação diferente, segundo Leila, por ser influenciada e de certa forma até auxiliada pela internet, meio com o qual cresceu. Nisso Leila não está errada: a internet está mudando a maneira como vemos o espectro da sexualidade humana.

No quarto episódio, mais uma vez Gabe mostra que acredita no estereótipo do bissexual promíscuo ao dizer que Leila tem sorte por não precisar se prender a ninguém, porque bissexuais não praticam a monogamia. Logo depois, a amiga Deniz, irada, pergunta a Leila por que ela fingiu ser lésbica, ao que Leila responde: “Eu não fingi, eu ainda sou a mesma”. Isso serve de gatilho para uma conversa mais profunda sobre ambições, assumir-se, correr atrás do que você quer e egoísmo.

Entretanto, é um momento pequeno que chama a atenção no episódio: triste e revoltada, Sadie conversa com Leila e conta como era ser lésbica nos anos 80, passar a adolescência escondendo a orientação sexual e sendo obrigada a transar com meninos para ser aceita pelos colegas e não envergonhar a família. Infelizmente, mentir é algo que muitos LGBTs jovens ainda têm de fazer para sofrerem menos.

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No quinto episódio, tudo gira em torno de um flashback mostrando como Leila conheceu Deniz. Em um bar, Leila vê Deniz, que está lá com o namorado e um amigo chamado Jamie. Leila diz a Jamie que é lésbica. O tiro sai completamente pela culatra, pois Leila se interessa por Jamie, que na verdade está apaixonado por Deniz, e enquanto isso Deniz vê em Leila um exemplo para que ela, Deniz, possa finalmente se assumir homossexual. Quantos LGBTs não precisaram de uma ajudinha para assumirem ser quem são? Os que estão se assumindo hoje, na adolescência, não estão fazendo isso porque a promiscuidade come solta e as crianças são expostas a más influências, mas porque estes adolescentes estão percebendo, através de seus ídolos e do entretenimento que consomem, que está tudo bem ser quem você é, mesmo não sendo hétero. E isso é maravilhoso: estes adolescentes podem começar a viver a vida deles de verdade cedo, mais cedo que os LGBTs de outras gerações.

No sexto e último episódio, Leila descobre que Sadie fez uma inseminação artificial, e fica aborrecida. Ela fica ainda mais surpresa ao descobrir que Sadie escolheu um doador com a herança genética de Leila. E é uma pena que a série acabe aí, porque havia potencial para contar mais histórias destas personagens.

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Desirée Akhavan trata com muita naturalidade questões que são tabus, como pelos no corpo feminino, mostrar seios na tela sem conotação sexual e sexo lésbico. Felizmente, não temos nada ao estilo “Azul é a cor mais quente”, um filme que não passa de uma imensa fantasia sobre o que um homem hétero acha que acontece num relacionamento entre lésbicas. Desirée, como mulher bissexual, está ali, em frente e por trás das câmeras, para mostrar que um relacionamento lésbico é tão comum quanto um relacionamento heterossexual, sem nada incrível ou especial — aliás, nem deveríamos usar os termos “relacionamento heterossexual” e “relacionamento lésbico”. São todos relacionamentos!

Uma de minhas cineastas favoritas da nova geração que desponta com o cinema indie — Desirée é diretora de “Uma Boa Menina” e “O Mau Exemplo de Cameron Post” -, Desirée promete. É muito bom vê-la não apenas desabrochar como cineasta, mas tratar também de temas únicos, de inspiração autobiográficos, e neste processo abrir mentes e inspirar pessoas.

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