“The Women” e a animalização das mulheres

Jess
Cine Suffragette
Published in
9 min readOct 27, 2017

As mulheres (The Women, em inglês) é um daqueles filmes que nem colocando o nome no cabeçalho tiraria 0,5 no Teste de Bechdel.

Se George Cukor, o diretor do filme, fosse reclamar ao professor por causa de seu zero, teríamos os seguintes argumentos:

Mas mais de 135 mulheres trabalharam no meu filme. Meu filme só tem mulheres, ele não conta com nenhum personagem masculino! The Women retratou com fidelidade o mundo das mulheres. Nós tiramos os homens de cena para dar voz às mulheres.

O nosso George fictício, coitado, achava que estava fazendo um grande trabalho mostrando o mundo das mulheres, mas o que não sabia era que seus olhos viam esse universo através de lentes machistas.

Atenção, este texto contém spoilers!

Quem são essas mulheres do título? Todas as mulheres, meus amigos. A ideia de The Women é universalizar a narrativa feminina, e o filme faz isso através da personagem principal, Mary Haines (Norma Shearer). Mãe e esposa, ela vive uma vida feliz ao lado de Steven, seu marido, de quem apenas ouvimos Mary e suas amigas falarem.

Tudo na vida de Mary é invejável: seu casamento, sua filha educada e seus bens. Além disso, os bons modos dela são dignos de nota do espectador, especialmente quando entram em contato com os de suas amigas. Mary fala baixo, não faz comentários maldosos e está sempre de bom humor. Em contrapartida, suas amigas, especialmente Sylvia Fowler (Rosalind Russell), são exatamente o contrário. Elas berram, fofocam e armam barracos. A oposição entre Mary e suas amigas é uma maneira de acentuar o modelo ideal de mulher versus o tipo de mulher que a sociedade abomina. No entanto, nem o refinamento salva Mary do maior tormento na vida de uma mulher: ser traída.

O lar de comercial de margarina da família Haines começa a desmoronar quando Mary descobre que está sendo traída. A outra é uma garota que trabalha em uma loja de perfumes, Crystal (Joan Crawford). As ações principais do filme começam a se desenrolar por conta desse plot twist.

As premissas tóxicas de The Women

The Women conta uma narrativa que universaliza o ser mulher, ou seja, tudo o que a trama apresenta é o que o patriarcado imagina que seja ser mulher. Todas as personagens, para começar, pertencem à esfera privada. A única que precisa trabalhar é Crystal, porque é pobre, mas em um emprego aceitável para sua época, como vendedora em uma loja de perfumes.

A inteligência delas é subestimada o tempo inteiro. Elas são guiadas por suas emoções, o que faz com que metam os pés pelas mãos. Não é à toa que elas são apresentadas como animais nos créditos de abertura. Animais têm instintos, não são inteligentes.

Em mais de duas horas de filme, George Cukor nos apresenta um modelo de sociedade que seria tão 1939 se não fosse tão 2017. Até parece que estamos assistindo a caixa de comentários do G1 criar vida. Nessa distopia de Cukor sem homens, as mulheres são guiadas pelas seguintes premissas:

As mulheres se odeiam e precisam competir entre si

A “graça” de The Women está nos inúmeros barracos que acontecem durante o filme, que deixariam a equipe do Programa do Ratinho com muita inveja. Ao descobrirem a traição de Steven, as amigas de Mary decidem conhecer “a outra” na loja de perfumes. Elas chegam lá, e começa a se desenrolar um diálogo ácido entre Crystal e as defensoras de Mary. O teor da discussão começa a aumentar até que ela termina com Sylvia Fowler caindo em cima de um carrinho de perfumes.

Outra cena digna de atenção é o confronto entre Crystal e Mary em uma loja de roupas. Ele acontece após a separação de Mary e Steven, quando Crystal fica por cima da carne seca e pode consumir os mesmos produtos caros que Mary. Apesar de não conter nenhum tipo de agressão física, é interessante olhar para essa cena como um reforço da ideia do ódio supremo que mulheres nutrem entre si. Mary humilha Crystal porque, na sua cabeça, ela é barata e vulgar. Já Crystal humilha Mary por ela ser conservadora demais, ou seja, jamais satisfaria Steven. É mulher contra mulher.

O confronto entre Crystal e Mary.

De todos os recadinhos sobre competição que a trama nos dá, o mais forte é a comparação entre as mulheres e os animais nos créditos de abertura. Logo que o filme começa, vemos o nome das atrizes aparecer, depois um animal e por último o rosto delas. A escolha dos animais não é nada aleatória. Elas têm a ver com a personagem de cada atriz. Por exemplo, Crystal é retratada como um tigre. Quer alegoria mais eficaz que essa? Tigres são predadores. Nada melhor do que retratar “a outra” como a predadora, a rainha da selva.

Sylvia Fowler é representada por uma gata preta. Gatos pretos, para começar, dão azar e foi o que aconteceu a Mary, pois fora Sylvia quem descobriu sobre a traição de Steven. Além disso, Fowler sempre mantém suas unhas afiadas, prontas para arranhar o rosto de qualquer um com suas piadas ácidas. Já Peggy (Joan Fontaine) é retratada como uma ovelha. Braço direito de Sylvia, ela é bastante ingênua em relação à maneira como os casamentos e a sociedade funcionam.

Além do fato de os animais serem inferiores aos homens, comparar as mulheres com animais remete à selva. Neste caso a selva feminina. É competição, a lei da mais forte. É como se houvesse uma seleção de Darwin e só as mais aptas pudessem sobreviver. Claro que as mais aptas são aquelas que conseguem se encaixar socialmente no que é esperado delas. Mulheres como Crystal não conseguem sobreviver durante muito tempo por causa de sua personalidade fora da curva.

Sylvia Fowler: a personificação da fofoca

É através de uma fofoca feita por Sylvia que tomamos conhecimento de que Mary está sendo traída. O boato explode como pólvora no lugar onde todas as mulheres da alta sociedade fazem as unhas e a última a saber é a própria Mary. Aliás, a personagem toma conhecimento de que está sendo traída por uma manicure com quem todas as mulheres faziam as unhas especialmente para ouvir essa infame história.

A fofoca é o mal das mulheres, e esse mal é personificado pela figura de Sylvia Fowler. Ela é desbocada e o conflito do filme começa por causa dela, pois ela toma a iniciativa de conhecer Crystal na loja de perfumes. Aliás, a própria aparência de Rosalind Russell ajuda a criar a imagem desagradável de Fowler. Muito mais alta do que suas colegas e não considerada exatamente uma diva, Russell era perfeita para viver a desbocada Sylvia. Não há como imaginar suas colegas, tão imaculadas, fazendo o mesmo papel.

Crystal e Mary: a mulher da esfera privada e da pública

Como não poderia faltar, The Women apresenta uma das dicotomias mais machistas de todos os tempos: a mulher para casar e a para trair. Essa premissa parte da ideia de que determinados tipos de mulheres são apenas aceitáveis para um breve affair entre quatro paredes, enquanto outras podem ser apresentadas na esfera pública.

Crystal representa a esfera privada, a mulher com quem todo homem sonha em se envolver por conta de sua ousadia e alegria, mas que na hora de juntar os trapos foge dela como o diabo foge da cruz. Ela é a representação da mulher predadora, que vira a cabeça dos homens, e que no fim das contas quer dar o golpe do baú para sair da miséria.

Na realidade, Crystal é considerada barata porque não segue regras. Ao contrário de Mary, ela não mede palavras. Crystal usa gírias e fala alto. Além disso, o filme deixa entender que ela tinha muitos envolvimentos casuais, o que também é digno de uma mulher que não se dá ao respeito. Basicamente, Crystal é a vilã do filme porque ela é o oposto do que a sociedade espera de uma mulher.

Em contrapartida, Mary é a mulher da esfera pública. Culta e refinada, ela é um troféu a ser exibido, uma vez que segue os padrões determinados para as mulheres. Até mesmo no momento mais caloroso do confronto com Crystal, ela não consegue atingir o mesmo “nível baixo” de vocabulário de sua rival. Mary é educada demais para tal, tanto é que ela decide se separar do marido e dá-lo de bandeja à amante.

Até mesmo a escolha das atrizes para interpretar essas duas personagens não foi aleatória. Norma Shearer e Joan Crawford estavam em polos completamente opostos, e o estúdio onde elas trabalhavam sabia disso. Ambas eram divas e únicas, mas Joan tinha um apelo sexual muito maior do que Norma. Ela tinha mais coragem de ousar em seus papéis, e essa não foi a primeira vez que ela interpretou uma personagem de tipo “baixa”. Além disso, a própria vida pessoal de Joan muitas vezes fazia com que a considerassem uma mulher baixa, especialmente por seus divórcios e depois por viver sozinha.

Trair é inerente à natureza dos homens

A culpa do homem na traição é minimizada em The Women. A atenção de todas as personagens se volta para Crystal quando elas descobrem que Mary está sendo traída. Mas e Steven? Ele também teria uma parcela de culpa nisso, não?

Para as mulheres de George Cukor não. Muito pelo contrário, a traição seria algo inerente aos homens. Essa premissa nos é apresentada através de um diálogo entre Mary e sua mãe, quando essa vai lhe pedir conselhos sobre como proceder em relação à infidelidade.

A mãe de Mary, então, a aconselha da seguinte forma:

Essa história não é novidade, acontece com a maioria das esposas. Steven é um homem. Ele está casado há dez anos. Steven está cansado de si. Ele deseja ser jovem novamente. (…) Só há uma solução quando um homem cansa de si: ver-se pelos olhos de outra mulher.

Sendo assim, nada mais normal do que ele procurar o amor em outra freguesia, porque o problema não é Mary, mas o próprio Steven. É por isso que a mãe de Mary a aconselha não fazer nada, pois mais cedo ou mais tarde ele se cansaria da amante e voltaria correndo para os braços da esposa.

Portanto, a traição é algo da natureza do homem. Ele não poderia não trair, porque não é assim que funciona. Essa é a mesma ideia de que um homem assedia uma mulher porque é da natureza galante dele, porque seu instinto é assim. Não. The Women tenta desculpar os erros dos homens, mas sabemos que se Steven fosse uma mulher, a coisa não funcionaria assim. Ele provavelmente seria execrado em praça pública por trair, exatamente como aconteceu a atriz Kristen Stewart quando ela traiu Robert Pattinson.

E o que fica de tudo isso?

Como a Lê disse neste texto fantástico, às vezes dá vontade de desistir do cinema. Filmes como The Women nos dão vontade de jogar a toalha, mesmo que ele seja de 1939. O problema não é o ano e sim ver que todas as ideias expostas acima continuam sendo mais difundidas do que nunca. 2017 nunca pareceu tanto 1939.

George Cukor já faleceu, mas aos novos diretores aqui vai um recado: expandam suas narrativas sobre as mulheres. Não universalizem nossas experiências. Somos muito mais do que rostinhos bonitos em busca de um marido. Quando pedimos representatividade, estamos pedindo produções plurais, muito diferentes de The Women, que nos coloca em uma caixinha de padrões sufocante.

The Women foi inspirado em uma peça de teatro e quando o filme foi lançado, ela já estava em sua 666ª performance na Broadway. Um sucesso total. Esse sucesso chegou em 2003, quando realizaram um remake do filme com atrizes como Meg Ryan e Annette Benning. Por que The Women fez tanto sucesso? Será que era porquê as mulheres da época não conseguiam se enxergar de outra maneira? Será que tem a ver com sua visão extremamente machista do que é ser mulher? Talvez.

Por que ainda rimos de The Women? Será que ele é tão engraçado assim? Na minha opinião, depois de rever o filme, cheguei à conclusão de que ri de nervoso. Porque constatei que essas ideias ainda estão por aí, ou seja, eu ri da violência que sofro todos os dias.

Será que seria demais pedir para rirmos com consciência? Eu deixo essa conclusão com vocês.

Vamos continuar o diálogo?

TwitterYouTube

--

--

Jess
Cine Suffragette

Tradutora, noveleira e apaixonada por cinema.