Todxs Nós: série nacional amplia representatividade LGBTQ+

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readMay 12, 2020

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Cada vez mais há séries sobre o universo LGBTQ+. Isso é diversidade, certo? Nem sempre. A maioria dessas produções foca em personagens gays, com algumas lésbicas e, nos últimos anos, alguns bissexuais e transexuais também. Aí já temos a sigla LGBT representada. Mas e os demais? Afinal, a sexualidade é um espectro, e aquele sinal de + não está lá só para enfeitar a sigla.

No espectro da sexualidade encontramos também pansexuais, assexuais, demissexuais e muitos outros, além de, no que se refere ao gênero, termos os indivíduos não-binários. A nova série nacional da HBO, “Todxs Nós”, parte exatamente da jornada de uma pessoa não-binária para explorar os desafios dos jovens modernos. A série também trata de assuntos como empregabilidade de pessoas trans, doenças sexualmente transmissíveis, racismo no ambiente de trabalho, além das falácias do “racismo reverso” e da “heterofobia”.

Rafa (Clara Gallo) sai do interior e de perto da família careta — em especial do pai que não lhe aceita — e vai morar com seu primo gay Vini (Kelner Macêdo) em São Paulo. Vini divide o apartamento com Maia (Julianna Gerais), negra, heterossexual e feminista. Depois de uma discussão com o pai, Rafa, com o apoio da madrasta e da irmã, recebe a anuência paterna para ficar seis meses em São Paulo em um período de autodescoberta.

Vini é filho da hippie Inês (Gilda Nomacce) e por influência dela faz parte de um grupo de teatro experimental. Ele tem dificuldades de aceitar que o namorado, Julio, quer um relacionamento aberto. Quando um ator de cinema e televisão, Rael, se junta ao grupo de teatro, Vini começa a pensar na possibilidade do relacionamento aberto… e a questionar a heterossexualidade que Rael performa para a mídia e para os fãs.

Maia é programadora numa empresa de transporte por aplicativo. Ela fica sabendo sobre um caso de um motorista que assediou uma passageira e resolve conversar sobre isso com seus superiores. Uma gerente, de início, não quer falar sobre o assunto, mas vendo-se acuada menciona o caso. A mulher, entretanto, diz que pesquisou sobre a vítima do assédio e que ela não pode ser levada a sério porque “sai de madrugada, vive pedindo carro depois das baladas”. Maia descobre o nome e endereço do assediador e, junto com Rafa, decide fazer justiça com as próprias mãos, pichando a casa do homem — curiosamente, casa de número 17 com a bandeira do Brasil pendurada na janela e cartazes sobre nióbio colados na parede…

Rafa só percebe seu privilégio em uma roda de conversa com outras pessoas LGBTQ+ — Rafa narra seu “sofrimento” para o pai aceitar sua não-binariedade e lhe dar um cartão de crédito para passar seis meses em São Paulo, enquanto as outras pessoas ao seu redor já foram presas, violentadas, expulsas de casa e tratadas como se não fossem gente.

Mesmo sendo homossexual, Vini não escapa de ser preconceituoso. Ele demonstra isso quando faz piadas com a não-binariedade de Rafa e quando chama o grupo de feministas do qual Maia faz parte de “feminazis”. Prova de que ninguém nasce com a mente aberta: conhecimento e desconstrução são processos constantes.

Alguns espectadores reclamaram do excesso de didatismo da série. Eu, entretanto, não me incomodei com os momentos mais didáticos, e inclusive aprendi com eles.

Escrita e dirigida pela dupla Heitor Dhalia e Vera Egito, a série inovou ao mostrar a primeira cena de sexo entre duas pessoas não-binárias na televisão. A ideia da série partiu de Vera, que desde 2016 começou a se interessar pela quebra de barreiras na maneira como compreendemos o gênero.

Embora Rafa seja interpretade por uma atriz cisgênero — Clara Gallo, que foi a protagonista do filme “Califórnia” (2015), da diretora Marina Person — há pessoas não-binárias no elenco: Xád Sassará e Flow Kountouriotis, que interpretam respectivamente Juno e X, tatuadores. Além delxs, temos as pessoas reais na roda de conversa da qual Rafa participa.

Por ser uma produção da HBO — canal que não faz parte dos pacotes básicos da TV a cabo — “Todxs Nós” corre o risco de chegar a um público reduzido e já convertido para a causa LGBTQ+. Espero que o debate não fique só entre os que já se interessam pela causa, afinal, combater a LGBTfobia faz-se mais necessário do que nunca. O Brasil é um dos países mais perigosos do mundo para a população LGBTQ+, e Rafa não escapa desta estatística: elx é atacade após ficar com uma menina na balada, causando ciúmes em um garoto que estava interessado na menina. A masculinidade ferida dos homofóbicos pode ser perigosíssima para os LGBTQ+.

A primeira temporada de “Todxs Nós” terminou com ganchos e um grande entrosamento entre seus personagens, que se tornaram uma verdadeira família — porque família deixou de ser papai, mamãe e filhinhos faz tempo. Esperamos que venham mais temporadas. Até lá, temos ainda muitos preconceitos para combater. Vamos juntxs!

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