“Um Dia de Cada Vez” e uma história sobre sair do armário
Este artigo contém spoilers da série “Um Dia de Cada Vez”, da Netflix. Se você ainda não acabou a primeira temporada, pense bem antes de continuar a leitura.
A Netflix tem em seu catálogo diversas séries alinhadas com o pensamento liberal e que são um retrato da diversidade. Uma das melhores séries originais do serviço de streaming é “Um Dia de Cada Vez”, o reboot de uma sitcom de sucesso dos anos 70. A nova série pegou a premissa da sua antecessora e desenvolveu uma galeria de excelentes personagens, criando episódios que lidam com as questões do nosso tempo e trazem à tona discussões necessárias.
No episódio 8 da primeira temporada, Elena (Isabella Gomez), a filha mais velha de Penelope (Justina Machado), uma enfermeira do exército recém-divorciada, conta para o irmão mais novo, Alex (Marcel Ruiz), que ela gosta de garotas. Naquele momento ela está confusa e ainda não sabe se é lésbica ou bissexual. No mesmo episódio, Alex conta o “segredo” de Elena para o vizinho — e única figura masculina da série — Schneider (Todd Grinnell).
Dois episódios depois, Elena se assume para a mãe. No episódio 11, ela conta que é lésbica para a avó Lydia (Rita Moreno). Na season finale, ela se assume para o pai, quem ela não via há mais de um ano. As reações são diversas.
Penelope tenta apoiá-la, mas tem problemas de aceitação. Todos pensavam que Lydia não reagiria bem à notícia por ser uma católica devota, mas ela aceita bem a novidade. Victor, por sua vez, não aceita nada bem a notícia.
Lydia tem o discurso mais notável sobre aceitar sua neta. Embora bem-humorado — afinal, trata-se de uma série de comédia — é um discurso inspirador. Lydia se refere ao que o Papa Francisco disse uma vez sobre os homossexuais e, como o Papa é o elo entre Deus e os católicos, isso significa que Deus também quer que o mundo aceite e acolha os homossexuais. E há mais: Lydia aceita Elena como ela é porque a ama.
E esta é a lição mais importante da primeira temporada da série. Nós não nascemos sabendo os dogmas de uma religião: é com o tempo que estes dogmas nos são ensinados por nossas famílias. E nós não nascemos sabendo odiar quem é diferente. Nós só nascemos sabendo amar. E às vezes precisamos apenas disso: de esquecer o que aprendemos, seguir nossos instintos, e somente amar.
A dificuldade de aceitação por parte de Penelope é mais tarde explicada: ela tinha muitas expectativas com relação a Elena. Penelope sonhava em trocar confidências com a única filha sobre os namoradinhos. É óbvio que elas ainda podem fazer isto, como de fato acontece quando elas comentam sobre o novo namorado de Penelope no mesmo episódio. Isso nos faz lembrar das expectativas que os pais criam para seus filhos e que podem se tornar fardos para ambos, pais e filhos.
Victor é, no último episódio da primeira temporada, um babaca em relação à sexualidade de Elena. Primeiro ele diz a maldita frase: “é só uma fase”. Depois ele diz que a filha deve estar confusa e em breve vai se esquecer desta “ideia”. Então ele culpa Penelope, a mãe solo, porque “ela deixou isto acontecer”. Ele chega ao ponto de dizer que “ser gay é moda agora, por isso Elena decidiu que queria ser gay”. Penelope retruca: “com certeza, ela escolheu sofrer muito bullying e preconceito porque está na moda!”.
Muitas pessoas criticaram o fato de Elena ser construída como um grande estereótipo: ela é a nerd feminista que luta por justiça social E que é lésbica. Eu discordo com essa ideia de estereótipo. Se Elena não fosse uma mulher inteligente e feminista, ela não se assumiria na adolescência. Ela esperaria sair de casa para se assumir, ou pior: por vir de uma família religiosa, ela poderia se punir por ser diferente, por pensar em “pecado”. Se ela não fosse esclarecida e inteligente, ela não aceitaria a si mesma, e não seria capaz de se assumir em busca da aceitação de seus entes queridos.
“Um Dia de Cada Vez” nos traz discussões muito mais profundas do que esperamos quando nos sentamos para ver a série. Para ver os 13 episódios da primeira temporada, fique preparado, talvez com uma caixa de lenços por perto. Ah, e com a mente aberta também.