Um Oscar para inglês ver

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
6 min readFeb 25, 2019

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Você deve conhecer a expressão “para inglês ver”. Mas você sabe de onde ela vem?

No século XIX, a Inglaterra tinha um só objetivo: conseguir mais consumidores para seus produtos industrializados. Para isso, algo era necessário: o fim da escravidão no mundo todo – não por bondade, mas por necessidade capitalista, afinal, escravo não compra. E por isso os ingleses, muito influentes na política brasileira, pressionaram continuamente o Brasil para acabar com a escravidão. Entretanto, isso não era “interessante” para a elite que vivia da agricultura e que usava mão de obra escrava. A solução foi promulgar leis “para inglês ver”: leis que não mudavam nada na escravidão brasileira, mas que aparentemente eram progressistas e agradavam a Inglaterra.

A verdade é que, depois da Independência em 1822, o Brasil se livrou da metrópole Portugal, mas passou para o jugo da nova mandante Inglaterra, de quem era economicamente dependente. O Brasil não deixou de ser colônia.

E o que isso tem a ver com o Oscar? Ora, em se tratando do mais tradicional prêmio do cinema, somos todos colônia de Hollywood – ou melhor, estamos à mercê dos votantes da Academia, em sua maioria brancos e do gênero masculino. Isso significa que um filme, para conquistar o Oscar, precisa ser “para a Academia ver”, precisa agradar ou ao menos mexer com os sentimentos deste seleto grupo de pensamento conservador.

“Roma” é um filme “para a Academia ver”, com estrutura narrativa tradicional de três atos, ancorada nas memórias do diretor – o que o torna, para alguns, impossível de ser criticado “porque é um filme autoral” – e falso discurso progressista. Mais do que isso, “Roma” é produto da Netflix, que quer mais do que tudo ser aceita pela Academia e que gastou milhões na campanha do filme até o tapete vermelho. E é também produto de um cineasta mexicano, já laureado pela Academia e com domínio invejável de sua câmera. No final das contas, o México e a Netflix são como a colônia brasileira, querendo a aprovação de uma entidade mais antiga e poderosa.

Sim, “Roma” é tecnicamente perfeito, mas piegas e perverso. Não é um filme feminista apenas porque Marina de Tavira (cuja indicação a Melhor Atriz Coadjuvante permanece inexplicada) diz a Yalitza Aparicio, intérprete da empregada Cleo, que as mulheres estão sempre sozinhas. A declaração em si não mudou nada – a hierarquia entre patroa e empregada não mudou, e mesmo após salvar o filho da patroa de um afogamento Cleo ainda precisa se colocar em seu lugar, o quartinho dos fundos da casa.

Mais do que isso, o maior defeito em Cleo é não ter voz nem vontade. Cuarón, fingindo-se de progressista, faz um filme sobre uma mulher mas não dá a ela agência sobre sua vida – Cleo simplesmente reage ao que acontece com ela, e no único momento em que tem um desejo se arrepende dele, para o bem da sagrada maternidade.

“Roma” é sucesso porque a sociedade ama histórias de superação dos pobres coitados – mais do que isso, a sociedade precisa destas histórias para se sentir bem. São histórias que embelezam o sofrimento, como a do estudante que passa no vestibular após estudar 12 horas por dia ou da criança que aprende a ler depois de caminhar 10km por dia até a escola. São histórias em que se vê que há algo errado – o modelo de aprovação e avaliação nas escolas, a falta de acesso à educação – mas não se faz nada para não perder a beleza do sofrimento. A mesma coisa acontece com Cleo: há o embelezamento da segregação espacial, da exploração pelos patrões e do tratamento como inferior (em especial pela avó da família) para que seja apreciado o fato de que, para as crianças, Cleo é da família. Pode ser da família, sim, mas a que custo?

“Roma” é só uma parte de um Oscar caótico. Um Oscar sem apresentador, depois que Kevin Hart teve tweets homofóbicos do passado descobertos. Um Oscar concedido por uma Academia cujo presidente foi acusado de assédio sexual – e inocentado por um comitê exclusivo. Um Oscar que voltou atrás em diversas decisões, como a de criar uma categoria para Melhor Filme Popular e entregar alguns prêmios nos intervalos.

E, mesmo assim, um Oscar histórico. Mulheres negras foram premiadas nas categorias Atriz Coadjuvante, Figurino e Design de Produção. O primeiro curta-metragem da Pixar a ser dirigido apenas por uma mulher, Bao, saiu vencedor, assim como um documentário de curta-metragem sobre menstruação. Spike Lee ganhou seu primeiro Oscar pelo roteiro de “Infiltrado na Klan”. Estava sendo uma boa noite. Até que, à moda de “Roma”, o final reforçou o status quo.

O Oscar de Melhor Filme para “Green Book – O Guia” é vergonhoso e um sinal do quanto a Academia tem o discurso progressista tão vazio quanto o de “Roma” – que, aliás, só não ganhou o prêmio principal por ser um filme mexicano e, em especial, da Netflix. “Green Book” foi a escolha segura, mas jamais a escolha certa.

Primeiro, a Academia que celebra mulheres e diz apoiar movimentos como #MeToo e Time’s Up premia Peter Farrelly, diretor e roteirista de “Green Book”, acusado de assédio sexual. Segundo, outro roteirista de “Green Book” é Nick Vallelonga, que fez comentários islamofóbicos quando Trump decretou o fracassado Muslim Ban. Para Vallelonga, parece valer a mesma desculpa de Cuarón: “Green Book” é a história do pai dele, e por isso tudo está liberado. Aliás, Mahershala Ali, ganhador do Oscar de Ator Coadjuvante – apesar de ser protagonista de “Green Book” – e muçulmano, sequer citou Vallelonga no seu discurso. A escolha de submeter Ali como coadjuvante pode ter sido estratégica, para ter mais chances, mas é também simbólica: como negro, ele fica em segundo plano.

E para “Green Book” foi também um Oscar de Roteiro Original, roteiro esse que retratou tão mal o músico Don Shirley que Mahershala se desculpou pessoalmente com a família de Don. Um roteiro que apaga a bissexualidade de Shirley – mesma coisa feita pelo roteiro de “Bohemian Rhapsody”. Um roteiro que traz o mito do “white savior”, do homem branco sem o qual o negro não aprenderia algo ou não evoluiria. O mito do “white savior”, presente em outros ganhadores do Oscar como “Conduzindo Miss Daisy” (1989) e “12 Anos de Escravidão” (2013), é recurso narrativo que deveria ter sido abandonado há tempos, mas continua firme e forte por acalmar as elites e, em especial, massagear o ego do homem branco.

E foram apenas homens brancos que receberam o Oscar de Melhor Filme. Octavia Spencer, também produtora de “Green Book”, ficou de fora na submissão dos nomes dos produtores. Da mesma forma, Cuarón recebeu os prêmios de Diretor, Filme em Língua Estrangeira e Fotografia, falando em um dos discursos sobre a importância das domésticas – discurso este que não mudará nada o status quo, mantido com tanta insistência em seu filme. Cuarón foi porta-voz de uma doméstica sem dar-lhe voz alguma, e os homens brancos por trás de “Green Book” fizeram o mesmo com os negros afetados pela segregação no sul dos EUA.

Somos cinéfilos e cinéfilas, críticos e críticas. Não vamos desistir do Oscar. Mas, considerando a falsidade do discurso da Academia, fica cada vez mais difícil curtir a premiação.

E é melhor nem falar nada sobre os quatro Oscars de “Bohemian Rhapsody”.

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