Ventre Livre (1994), de Ana Luiza Azevedo

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
10 min readSep 27, 2020

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“Ventre Livre”, 1994 (Imagem: reprodução)

Do ponto de vista biológico, o melhor momento para uma mulher ter filhos é com vinte e poucos anos, quando há mais chance de sucesso da fecundação, de uma gestação saudável e de um parto sem problemas. Entretanto, do ponto de vista social, essa idade nem sempre é a ideal. Muitas mulheres com vinte e poucos anos estão estudando, se especializando, construindo uma carreira, e não têm parceiro fixo, nem condições financeiras, nem maturidade para cuidar de um filho.

Hoje, está mais do que óbvio que o corpo da mulher — ou melhor, uma parte específica do corpo da mulher: o útero — é um campo de batalha política. Controlar os úteros significa controlar até onde vai a liberdade da mulher e sua igualdade perante os homens em todas as esferas, incluindo educação, mercado de trabalho e participação política. Quando eu nasci, lá no começo dos anos 90, a realidade era parecida, mas poucas pessoas se atreviam a apontá-la e denunciá-la. E foi isso que a cineasta Ana Luiza Azevedo se atreveu a fazer com seu documentário “Ventre Livre”.

A cineasta Ana Luiza Azevedo fotografada em 2010 (Imagem: reprodução)

De cara somos apresentados a diversas mulheres de 18 ou 19 anos que já têm dois ou mais filhos e fizeram laqueadura. Algumas delas se arrependem da decisão que, agora percebem, não tomaram — foram levadas por outros a tomar. Na época em que “Ventre Livre” foi filmado — 1993 — as laqueaduras podiam ser feitas junto à cesariana, de graça, e não era raro que políticos trocassem cirurgias de esterilização por votos.

Em 1996 foi proibida a prática da laqueadura junto à cesárea — porém, ainda hoje há absurdos na lei sobre laqueadura, como a necessidade de assinar um documento a ser enviado para o governo 60 dias antes da cirurgia — “60 dias para pensar para não se arrepender” — e a necessidade de autorização do marido para que mulheres casadas possam fazer o procedimento. Além disso, mesmo que a possibilidade de gravidez apresente risco à vida da mulher, ela precisa de laudos de dois médicos para fazer a laqueadura.

A lei de 1996 acabou com a “laqueadura de cabresto”, mas as exigências absurdas permanecem. A mulher só pode tomar o controle de sua vida reprodutiva depois de servir à sociedade como reprodutora, parindo ao menos dois filhos vivos. As mulheres sem filhos, porém conscientes de suas escolhas, são impedidas de fazer a laqueadura por médicos que tutelam a vida reprodutiva delas, dizendo que elas ainda vão “mudar de ideia”. Esta é uma realidade ainda muito presente hoje.

O documentário traz um dado que já sabemos ou ao menos imaginamos: há muito mais mulheres esterilizadas do que homens — em 1993, eram 27% das mulheres contra 1% dos homens. Um motivo é a crença machista de que a esterilização levaria o homem a ser “menos homem” — e por isso eles se recusam a fazer vasectomia, procedimento muito mais simples que uma laqueadura. Um dos entrevistados do documentário inclusive resume sua visão, certamente compartilhada por muitos: “Ela tem mais capacidade de fazer, né, ela já é mais acostumada, né? Não, homem não é para ser cortado não”.

A imagem de destaque na página do SUS sobre vasectomia ajuda a divulgar a ideia de que a cirurgia é invasiva (Imagem: reprodução)

Uma mulher chamada Vera explica perfeitamente outro motivo que leva mais mulheres do que homens a se esterilizarem:

“Por que as mulheres se esterilizam? Porque os filhos é só, é só a mulher que toma conta, né, elas têm que trabalhar, não têm com quem deixar, ganham pouco, não tem escola, não tem creche. Então essas coisas faz (sic) com que a gente não queira mais ter filho, né?”

Uma freira, Irmã Ivone, fala em até 10% de mortalidade nos abortos ilegais. A socióloga Lícia Peres estima entre um e quatro milhões de abortos por ano — entre dois e oito por minuto. O médico ginecologista Antônio Ayub comenta que morrem entre 50 e 100 mil mulheres no Brasil em decorrência de abortos inseguros — mortes totalmente evitáveis, visto que um aborto seguro tem menos chance de complicação que a extração de um dente, sendo, assim, o procedimento obstétrico mais seguro que existe.

(Imagem: Instagram Portal Catarinas)

Em 1993 e ainda hoje, é muito difícil saber com precisão quantas mulheres morrem por abortos ilegais, devido à subnotificação e, claro, à ilegalidade. Isso dá margem a dados de má fé, retirados de mentes com segundas intenções misóginas, como a do médico conservador que argumenta que o aborto não deve ser legalizado porque ele só viu uma mulher morrer em decorrência de aborto ilegal em toda sua carreira. É um exemplo óbvio da “epistemologia do visual” que contamina a sociedade, ou seja, da crença de que “se eu vi com os meus próprios olhos, eu acredito que aconteça, se eu nunca vi, é porque nunca acontece”.

Em 2019, o mesmo médico publicou um artigo de opinião na Folha de São Paulo declarando que não há necessidade de legalizar o aborto porque morrem “apenas 48 mulheres por ano” por complicações de aborto segundo dados do SUS. Ele, claro, desconsidera que as mulheres preferem negar o aborto até o último momento, com medo de que, se sobreviverem, acabem presas. E não era o médico “pró-vida”? Agora as vidas de 48 mulheres não importam porque elas eram “assassinas vagabundas”? Isso sem contar que, com estas mulheres, foram para o túmulo também os embriões, antes tão preciosos, e que agora não contam mais, já que estamos falando de karma e punição!

É importantíssimo o trabalho que o documentário faz ao trazer depoimentos de mulheres que fizeram aborto, na tentativa de retirar o estigma sobre o tema e destruir este tabu. De todas as histórias contadas no documentário, apenas uma mulher fez o procedimento com segurança numa clínica cara, enquanto as outras fizeram na ilegalidade e na insegurança. Uma história é contada pela família, pois a mulher não sobreviveu. Com o mesmo objetivo de desestigmatizar o aborto foi criado o projeto “Eu Vou Contar” pelo Instituto Anis Bioética*, apenas apresentando relatos com mais de oito anos desde o procedimento, porque é quando o crime de aborto prescreve. Para se ter uma ideia, atualmente o crime de estupro prescreve após 16 anos e tanto posse ilegal de armas quanto tortura prescrevem após 12 anos. Se a pena para o aborto for aumentada, como querem alguns políticos, aumentará também o prazo para prescrição.

O fato de uma freira introduzir o assunto do aborto no filme é simbólico. Num país tão profundamente religioso quanto o Brasil, a luta por este direito fundamental das mulheres raramente pode ser travada sem esbarrarmos na religião, tanto nas muitas forças religiosas contra o aborto quanto nas poucas porém importantes organizações pró-escolha com viés religioso. Uma destas organizações é a Católicas pelo Direito de Decidir.

“Por quê que eu posso falar que a gente tem que defender apenas a vida do inocente? A minha pergunta é: e a vida da mulher? E a vida dos outros filhos?
São vidas também, portanto a legalização é uma postura em defesa
da vida.” (Irmã Ivone)

A Católicas pelo Direito de Decidir foi fundada em 8 de março de 1993, quando o documentário “Ventre Livre” estava sendo gravado e dois anos antes de o Papa João Paulo II publicar a Encíclica Evangelium Vitae, em que afirma que “a contracepção e o aborto são males especificamente diversos do ponto de vista moral”, argumentando que a contracepção fere a castidade matrimonial e dando combustível aos facínoras ao dizer que os contraceptivos matam os fetos no ventre materno.

Em seu manifesto, a organização Católicas pelo Direito de Decidir deixa claro: “Consideramos que as religiões devem ajudar as pessoas a terem uma vida digna e saudável, e não dificultar sua autonomia e liberdade, especialmente em relação à sexualidade e reprodução.” Com o passar dos anos a organização se expandiu pela América Latina e para outros continentes, estando hoje presente em 12 países.

(Imagem: Instagram Católicas pelo Direito de Decidir)

Entretanto, o Brasil não será o maior país católico do mundo por muito tempo. A previsão é que em 2032 haja o mesmo número de evangélicos e católicos no Brasil, e por isso é imperativo que surja uma iniciativa evangélica progressista pelos direitos das mulheres. Surja, não: ressurja. Uma das fundadoras da Frente Evangélica pela Descriminalização do Aborto teve de sair do país após receber diversas ameaças de morte dos “pró-vida”, e por isso a organização continua as atividades de maneira mais remota, através das redes sociais.

Nosso ventre não é livre porque o Estado não é laico. Porque o aborto não é tratado como questão de saúde pública, mas sim como questão religiosa. Porque não importa se morrerão menos mulheres ou se o SUS economizará milhões por não ter de consertar abortos malfeitos, nossos argumentos racionais não importam quando o outro lado apela para o emocional dizendo simplesmente “aborto tem de ser proibido porque é pecado”.

(Imagem: reprodução / foto de Felipe Vieira)

Se o aborto for completamente proibido, importará apenas esta fachada pró-vida, esta aura imaculada de “país sem aborto”. Por baixo dos panos, centenas de milhares de abortos ocorrerão todos os anos, com segurança para quem conseguir pagá-los, sem segurança para quem não tem dinheiro. Aí fica óbvio o plano de genocídio da população negra e pobre, disfarçado de benfeitoria cristã. Mulheres negras e pobres não terão dinheiro suficiente para fazer abortos seguros em clínicas caras, e se arriscarão em procedimentos sem higiene ou se resignarão a seguir com a gravidez. É um projeto de eugenia — para as negras e pobres que morrerem em decorrência destes abortos — e um projeto de manutenção do status — para que as meninas e mulheres obrigadas a seguir com a gravidez abandonem oportunidades de estudo e de trabalho, o que as impedirá de ascender socialmente ou se tornar líderes comunitárias e políticas lutando por igualdade.

Precisamos salientar algo que de maneira nenhuma é histeria: os reacionários não se darão por satisfeitos se o aborto for completamente proibido — eles irão atrás da proibição dos anticoncepcionais também. Chamo-os não de “conservadores”, mas de reacionários, porque um conservador quer manter as coisas como estão no presente, enquanto um reacionário quer voltar aos “bons e velhos tempos em que mulher obedecia, não havia essa pouca vergonha de homossexual” e outras barbaridades.

(Imagem: reprodução)

Nos EUA e no Brasil os reacionários já colocam seus planos em ação, alguns classificando pílula do dia seguinte, minipílula e DIU como “microabortivos” e pedindo pela proibição destes métodos, o que conta com a conivência das “doulas cristãs” que repetem tal discurso absurdo. Proibir anticoncepcionais devolveria ao homem o controle da reprodução humana e promoveria a redomesticação da mulher, tão desejada pelos reacionários.

É muito provável que, após proibição de anticoncepcionais, ou mesmo paralelamente a ela, se siga a tentativa de proibição do que chamam de “ativismo abortista”, ou seja, a criminalização de qualquer mobilização ou fala a favor da descriminalização do aborto, com fatos e argumentos científicos, enquanto mentiras serão espalhadas metodicamente sobre “os riscos seriíssimos do aborto em qualquer ocasião”.

O desenvolvimento de anticoncepcionais eficazes foi a primeira revolução da história da humanidade a beneficiar mais as mulheres que os homens — e é por isso que, 60 anos após a aprovação da primeira pílula anticoncepcional, há ainda tantas pessoas querendo reverter a mudança. Mas, alerta de spoiler: nenhuma revolução da história da humanidade conseguiu ser revertida! Embora tenham ocorrido tentativas, depois de inventados objetos como a roda, a imprensa, a máquina a vapor e o cinema, estes não conseguiram ser eliminados. Podem ser regulados, mas jamais eliminados — e aí mora, sim, uma enorme ameaça para a autonomia das mulheres.

A parte final do documentário foca no estudo do caso da jovem gaúcha Carmen para discutir gravidez na adolescência e a importância de educação sexual de qualidade. O tema é óbvio, vem sendo batido na tecla há mais de 25 anos, mas no Brasil de 2020 também é ameaçado pela onda reacionária.

(Imagem: reprodução)

No começo do filme, a narradora diz que, na infância, ficou orgulhosa ao aprender que vivia no Brasil, “o país do futuro”. Só que este futuro teima em não chegar. Ou, melhor dizendo: o futuro não chega porque metade da população é tratada como inferior e quem dá as cartas e faz as leis sabe que, sem justiça e direitos reprodutivos, as mulheres jamais alcançarão a total independência. E é exatamente isso que os reacionários querem. Nunca foi sobre a santidade e a proteção da vida. Sempre foi sobre o controle dos corpos com útero.

“[A lógica do Brasil é] A mesma lógica que sempre projeta soluções no futuro: as pessoas depois do país, a igualdade depois do crescimento, a quitação da dívida só depois dos juros, a salvação depois da morte. Que lógica é essa que faz do aborto um crime e da esterilização uma bênção?”

* Neste dia 28 de setembro de 2020, Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização e Descriminalização do Aborto, estreia no canal do YouTube da Anis Bioética um documentário derivado da série “Eu Vou Contar”.

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