Vera (1987) — retrato pioneiro da transexualidade no cinema brasileiro

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJun 17, 2017

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Ana Beatriz Nogueira como Vera (Imagem: divulgação)

É 2017 e o Brasil é o país que mais mata travestis, transexuais e trans gêneros no mundo. É um país cheio de ódio e intolerância. Trinta anos atrás, um filme tentou dar voz aos transexuais ao contar a história de um deles com delicadeza e talento. Você deve imaginar o que aconteceu: no país da louvável família tradicional brasileira, o filme ficou esquecido. Mas nós o resgatamos.

Os créditos de “Vera” rolam por sobre um foguete. O foguete, símbolo fálico, é lançado após o letreiro avisar que se trata de uma obra puramente de ficção — embora, no fundo, não seja.

De calça jeans, camisa de manga comprida, colete e cabelo curtinho, Vera parece um rapaz. Ela quer ser chamada pelo sobrenome Bauer no novo emprego, em uma biblioteca.

Em flashback são mostrados os dias de Vera no orfanato. A vida não era fácil lá. O orfanato se assemelha a um manicômio- estilo American Horror Story: Asylum, com direito a solitária e autoritarismo. Na tentativa de recriar o núcleo familiar tradicional no orfanato, as meninas criam famílias, com algumas delas assumindo o lugar de figura paterna e masculina.

O namorico homossexual acontecia livremente nas tardes de sábado no orfanato. O diretor (Carlos Kroeber) vê isso e se diz preocupado com “as mulheres machonas do orfanato”. Sua solução é misturar as garotas com meninos de outra instituição, em um baile improvisado e vigiado, à luz do dia. Ah, e depois, claro, ele quer obrigar todas as meninas a usar vestido. Quando elas dizem que não querem usar vestido, ele diz “então bota o pau pra fora pra provar que é macho”.

Em seu novo emprego, Bauer se torna amigo de Clara (Aída Leiner), que trabalha no setor de vídeo do centro de pesquisa — e é lá que reaparece o vídeo do lançamento do foguete. A Clara, Bauer dedica um poema no jornal da empresa. Clara fica possessa com os rumores que surgem a partir de então, e diz que Bauer não havia entendido que ela queria só amizade. Com o tempo, Clara repensa sua decisão.

Quando vai trabalhar de terno e gravata, Bauer é repreendido e dizem que ela/ele “não está vestida de maneira adequada”. Ela/ele está dando o primeiro passo para se tornar homem, e explica isso para o professor Paulo (Raul Cortez), o homem que lhe conseguiu o emprego. De início, ele não acredita ser possível se fazer uma cirurgia para “arrumar o sexo”.

Cartaz em inglês anuncia Vera como “a história de uma mulher que queria ser um homem” (Imagem: divulgação)

Vera já se sentia diferente, e no orfanato tudo ficou claro quando ela ouviu que “os únicos machões de verdade ali eram Paizão e Tunica”. É o momento de descoberta, ao mesmo tempo libertador e cheio de dúvidas.

Vera/Bauer é interpretada pela novata Ana Beatriz Nogueira, que ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim por sua atuação. Ela faz uma cena arrebatadora dublando um karaokê. A música escolhida fala sobre sedução e sobre ser teu homem. E outro tipo de manifestação artística está presente no filme: a poesia. Os poemas que são declamados e digitados são de Anderson Herzer, cuja vida inspirou o filme.

Chamou-me muito a atenção o momento em que Bauer tem uma crise de ciúmes e diz que “Clara é sua mulher”. Quem disse que transexuais não podem ser machistas ao internalizar o comportamento do macho-alfa babaca?

Outra coisa que me chamou a atenção foi o fato de o filme se chamar “Vera”, e não Bauer. A escolha por não usar o nome social da personagem é um desrespeito com ela mesma, ainda que como entidade fictícia, e é também uma forma subentendida de dizer que não importa o que Bauer quer: ele sempre será Vera.

A retomada do cinema brasileiro ainda demoraria oito anos para acontecer. Hoje, algo parecido com o que o filme Vera fez há 30 anos só é possível no cinema cult, alternativo, que não chega a ser exibido por todo o país — e ainda corre o risco de sofrer um imenso boicote. Uma pena isso. Vera mostra a dor do processo de se descobrir transgênero e buscar aceitação — dos outros e de si próprio, por que não? Ao contrário do que muitos mal informados dizem, ser trans não é fase, não é moda, não é querer aparecer. É algo assustador, como Vera se dá conta. Era algo assustador em 1987. E continua sendo, 30 anos depois.

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