Visages Villages: a ressignificação do olhar

Jess
Cine Suffragette
Published in
9 min readMar 1, 2018

Em tempos de Oscar, obrigações imaginárias nos fazem assistir a todos os filmes. Funcionamos como máquinas, engolindo filmes, um atrás do outro, em uma velocidade absurda. É preciso vencer o maior número possível até o dia da premiação, e continuamos fazendo isso, mesmo sabendo que é quase impossível. Ao final dessa maratona pra lá de maluca, fica aquele gosto de ter engolido tudo sem apreciar o sabor. Ainda bem que não é o caso de Visages, Villages, indicado a Melhor Documentário.

É impossível não sentir o gosto doce que permanece nos lábios após a experiência de assistir a esse documentário da diretora Agnés Varda e do artista JR. Trata-se do sabor inesquecível que nos faz ir ao cinema e sair de lá revigorado, com a certeza de amar a sétima arte com todos os seus efeitos e as suas dificuldades. Por isso, para mim, Visages, Villages é um filme de ressignificações. Ele ressignifica o cinema, a própria Varda, a cultura das selfies, os lugares e as pessoas.

Rodado uma vez por semana, durante um ano, Agnès Varda e JR viajam pela França das pessoas comuns, buscando ouvir suas histórias e transformá-las em arte. Eles pegam carona na caminhonete de JR, uma espécie de laboratório fotográfico que tira e imprime fotos em tamanho grande, em tempo real. A cada cidade pela qual eles passam uma história diferente nos é apresentada. São pessoas comuns se aposentando, resistindo, vivendo. É impossível não se identificar com elas em algum momento.

A ressignificação da cultura das selfies

JR faz parte do Inside Out Project, e é impossível não falar dele, porque toda a essência de Visages, Villages reside na proposta desse projeto: fazer com que qualquer pessoa comum possa contar uma história, manifestar-se, através da fotografia. Em suma, transformar sua vida e história em arte.

Tudo começou quando, no ano de 2011, JR recebeu o TED Prize e incitou a criação de um projeto que pudesse mudar o mundo. Não que ele já não tivesse mudado o seu mundo antes, é claro. JR começou a ficar conhecido quando ressignificou espaços em Paris, colando fotografias de pessoas mais simples nos distritos burgueses da cidade. O projeto foi intitulado de Portraits of a Generation e permaneceu “ilegal” até a prefeitura de Paris cobrir o próprio prédio com fotografias do artista. Mas não era o suficiente para JR. Ele trabalhou em milhares de trabalhos após os Portraits, dando voz a palestinos e israelenses e às mulheres, por exemplo. Continuava não sendo suficiente. Ele queria alcançar o mundo. O Inside Out Project trouxe a possibilidade de trabalhar a ressignificação de lugares, pessoas e eventos em escala mundial. Qualquer um pode mudar a maneira como vemos o mundo.

Em Visages, Villages, existe uma ressignificação da cultura da selfie e do eu através do trabalho executado por JR e Varda. O coletivo nunca perdeu tanto espaço para o individualismo quanto agora. Estamos interessados em nos vender nas redes sociais, quer dizer, vender a imagem que acreditamos ser a melhor de nós. Nesse ínterim, as selfies desempenham um papel crucial, pois elas ajudam a disseminar uma versão feliz e bem-sucedida do nosso eu . Não há espaço para o fracasso em redes sociais. Ou você compreende as regras do jogo ou se retira dele.

A selfie, em Visages, Villages, é repleta de conteúdo político. A primeira história apresentada pelo documentário é a de Janine, única moradora de um antigo bairro de mineiros. JR e Varda conversam com a senhora sobre os motivos pelos quais ela ainda permanece ali, já que se encontra isolada no bairro. Janine não hesita em responder: “Eu resisto”. Em meio à evolução da cidade, ao barulho e ao caos, a senhora ainda ocupa uma velha casa. A dupla decide homenageá-la, então, tirando uma foto dela e fazendo uma colagem que ocupa a fachada de sua casa. Além disso, eles também colam retratos de mineiros em outras casas abandonadas nesse bairro como forma de cultivar a memória daquele espaço. Portanto, a selfie não é só mais um retrato descartável. Ela permanecerá naquelas fachadas, respeitando a memória de quem viveu ali antes. Não podemos apagá-la com o toque do dedo. Em uma cultura em que nada mais é palpável, e na qual os nostálgicos álbuns de fotografia estão desaparecendo, o que JR e Varda fazem é quase uma revolução.

A ressignificação dos lugares e das pessoas

A ressignificação das pessoas e dos lugares neste documentário passa por uma redefinição do que é cinema e quais seus motivos. O cinema de Agnès, ao meu ver, sempre foi um cinema das pessoas para as pessoas, voltado a entender as questões do mundo. Aliás, o fato de Varda não possuir formação acadêmica na área cinematográfica já nos diz muito sobre sua mensagem: uma pessoa pode falar sobre outra pessoa, se ela tiver a sensibilidade necessária. Não é preciso ter frequentado as melhores cátedras para isso.

Quando começamos a assistir a Visages, Villages, tudo aquilo que pensamos sobre cinema cai por terra. Voltamos ao velho e bom conceito, “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. JR e Agnès fotografam com o celular, com câmeras digitais comuns. A distância que os separa de nós é apenas o fato de JR ter uma grande caminhonete de fotografias para realizar grandes projetos. De resto, os dois nos convidam a pensar que também podemos ser os protagonistas de uma história, filmar e fotografar coisas. Dessa forma, o cinema se torna uma ferramenta poderosa, porque é apresentada como algo palpável a todos. E é por esse motivo que os lugares e as pessoas são ressignificados durante o documentário. Porque eles também participam de todo esse processo de contar a história.

Uma das histórias mais bonitas, em que pessoas e lugares se entrelaçam, é a de um vilarejo de casas abandonado. JR e Varda decidem dar uma festa nesse lugar, com uma mesa cheia de comida, para trazer algo de significativo a ele. Os presentes são convidados a tirarem fotos na caminhonete de JR. Mais tarde, as fotografias são coladas nas casas abandonadas. De repente, o lugar assume uma vida que não teria sido possível antes. O espaço público é ressignificado através dos rostos daquelas pessoas, ganhando vida. Segundo JR:

A gente tenta rehabitar um lugar, trazer um pouco de vida a esse lugar com rostos, com um pouco de energia. Nem que seja por um dia.

Depois que cursei Arqueologia na universidade, uma disciplina introdutória do curso de História, percebi como a arquitetura influencia a nossa relação com os lugares. Não se engane, a projeção de um lugar conta sua história. Conta o que ele quer passar, quem deve e quem pode frequentá-lo. Não era Hitler quem queria usar a arquitetura como forma de inserir os valores arianos e destruir as raças menos capazes? Pois é. Um vilarejo abandonado, com casas destruídas, nos diz que a vida passou por ali, mas acabou. Quando as fotos aparecem na parede dessas casas, é como se a vida voltasse e nós pudéssemos pensar naquele lugar de outra forma.

Lugares habitados também ganham novos contornos, vindos das pessoas que os habitam. É o caso da usina que ganha um muro com fotografias de todos os funcionários. Quando somos inseridos nessa nova história, é como se nos sentíssemos atropelados pela opulência e grandiosidade desse lugar. É tudo muito alto, em tons pastéis, dando uma sensação de distância ao espectador. No entanto, ao entrarmos em contato com os funcionários que lá trabalham, as coisas mudam de figura. Um deles está vivendo seu último dia na usina, pois irá se aposentar, e a câmera de Varda registra o momento em que ele diz que está para mergulhar em um vazio, sem saber o que vai fazer quando se deparar com a rotina de estar sempre em casa. Histórias como essa dão uma nova cor à usina, um lugar que aquele funcionário muito amava e está triste por deixar.

Agnès Varda como personagem do próprio documentário

Agnès não é apenas uma observadora passiva das pessoas que filma em Visages, Villages, ao contrário do que se poderia pensar de um documentário. Ela se envolve em cada história, e lá pelas tantas também se torna uma personagem da própria história que resolveu contar. Isso acontece da metade para o fim do filme, e tudo começa quando ela deseja homenagear um homem que ela fotografou nos anos 50, Gui, colando a fotografia dele em um rochedo, na praia. Gui foi um modelo para a jovem, que na época sequer sonhava em ser cineasta, e Agnès visita lugares onde o fotografou, com um misto de sensações. Infelizmente, a maré leva a colagem de Gui feita por JR.

A vida segue após o incidente da colagem na praia, com Varda decidindo visitar um velho amigo conhecido de todos nós cinéfilos: Jean-Luc Godard. Os dois eram muito próximos, principalmente na época em que Jacques Démy, diretor e ex-marido de Varda, estava vivo. Inclusive Godard rodou um curta-metragem dirigido por Agnès, também protagonizado por Anna Karina, chamado Les Fiancés du Pont MacDonald. Foi uma das raras aparições do diretor sem seus lendários óculos escuros. Guardem essa informação sobre os óculos.

Les Fiancés du Pont MacDonald: curta dirigido por Varda e protagonizado por Godard e Anna Karina.

Nossa amada senhorinha de cabelo tigelinha segue sua viagem para visitar o amigo, levando o doce favorito dele, mas acaba levando uma porta na cara. Isso mesmo. Ao tentar reconectar-se com seu passado, ressignificar sua história, Agnès Varda foi ignorada por Godard, que deixou um bilhete escrito com canetinha no vidro de sua casa. Nele, ele fazia trocadilhos com coisas da amizade que dizem respeito à amizade deles, especialmente a Démy, o que faz com que Agnès fique aos prantos. “Isso não tem graça”, ela diz.

Não sabemos se Godard fez ou não esse gesto de propósito, mas podemos perceber o impacto que ele causa em Agnès. Ela deixa o doce na porta do diretor e vai embora, chorosa. JR tenta consolá-la, tirando pela primeira vez seus óculos escuros. Como Godard, o artista se esconde por trás desses óculos, o que é muito interessante. Parece que JR não quer se revelar, ao mesmo tempo em que revela a vida de outras pessoas. Ao mesmo tempo que tem um senso apuradíssimo de amor e respeito humanos. Ao oferecer a Varda a possibilidade de olhá-lo nos olhos, sem nada para atrapalhar, ele também revela a si para nós. Não é à toa que essa é a última cena do documentário. Nada melhor do que fechar esse ciclo dando ao espectador uma pequena de chance de conhecer os idealizadores por trás desse projeto tão bacana chamado Visages, Villages.

Na torcida pelo famigerado Oscar

Não foi surpresa para ninguém o quanto eu panfletei Visages Villages nesta temporada de premiações. Na minha humilde opinião, é o melhor documentário na categoria em que concorre. Trata-se de uma celebração ao cinema do olhar, do principal objetivo da sétima arte: colocar o mundo em movimento. É engraçado como a dupla dinâmica JR e Agnès Varda panfletam sobre seu documentário até sem querer. No almoço do Oscar, a diretora não pôde comparecer, e para compensar JR levou uma réplica dela de papelão. É possível ver a versão de papelão de Agnès passeando pelas ruas de Nova York e batendo um papo com Steven Spielberg.

Ainda que não leve a famigerada estatueta, essa temporada de premiações foi, no mínimo, mágica para Agnès Varda. Ela foi agraciada com um Oscar Honorário, talvez o reconhecimento norte-americano mínimo do talento de uma diretora que sempre foi muito apreciada na Europa. A própria Agnès reconheceu a importância de ser reconhecida por Hollywood ao dizer:

Eu já recebi muitos prêmios. Mas, aqui na meca do cinema, eu recebi o melhor.

Além desse Oscar, houve a redescoberta de seu trabalho pelas cinematecas e cinéfilos. Graças a Deus se falou muito em Varda, e espero que falem muito mais. Com ou sem Oscar, podemos ter certeza de que a difusão da mensagem libertadora de seus filmes está apenas começando.

Vamos continuar o diálogo?

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Jess
Cine Suffragette

Tradutora, noveleira e apaixonada por cinema.