Where are my children? (1916), de Lois Weber

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readSep 26, 2017

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(Imagem: reprodução)

O que esperar de um filme que começa com um aviso de que trata de controle de natalidade, e logo depois apresenta os portões do Céu cheios de almas de crianças que esperam para nascer? O que esperar quando essas crianças são classificadas como “acidentais”, “indesejadas” e “vindas com reza”? O que esperar quando, aos três minutos e meio de projeção, descobrimos que o protagonista acredita na eugenia (!?!)? “Where are my children?” é um filme difícil de ser julgado — não apenas por questões de anacronismo e a quase abismal diferença que cem anos fazem na sociedade. É difícil julgar porque as intenções da diretora Lois Weber eram boas, mas o resultado foi estranho.

Um médico que carrega livros sobre controle de natalidade é julgado por “indecência” — situação inspirada em um caso real que aconteceu em 1915. No tribunal e no júri, apenas homens brancos. Um deles é o promotor Richard Walton (Tyrone Power Sr, pai do popular ator dos anos 40), um entusiasta da eugenia e também das grandes proles.

Um júri de homens brancos decide que um panfleto sobre planejamento familiar é indecente (Imagem: reprodução)

Enquanto isso, a esposa do promotor, Sra. Walton (Helen Riaume, esposa de verdade de Tyrone e comumente creditada como Sra Tyrone Power) indica um médico para uma amiga que quer “escapar da maternidade”. Ainda hoje, enquanto os homens estão discutindo sobre assuntos e condutas que em nada lhes dizem respeito, as mulheres abortam. Ele até vê o controle de natalidade com bons olhos — se usado apenas entre os pobres!

O medo de realizar um aborto clandestino é evidente, inclusive com uma figurante escondendo o rosto na clínica. Isso é uma representação real. Por outro lado, temos a ideia bizarra e piegas de que a alma do feto abortado volta para o céu com uma marca de serpente, representando seu status inferior.

À direita, uma figurante rouba a cena (Imagem: reprodução)

Mais tarde, a Sra. Walton recomenda novamente o médico para seu irmão, que engravidou a filha da empregada. Neste caso, entretanto, há um imprevisto: a moça morre após o aborto clandestino, e o médico é levado a júri pelo próprio Sr Walton, que fica em choque ao descobrir que sua esposa indicava os serviços do médico porque ela própria já os havia usado algumas vezes.

A Sra. Walton e uma amiga (Imagem: reprodução)

Há, obviamente, alguns conceitos muito errados sobre a maternidade, que ainda estamos lutando para desconstruir. A maternidade é vista como uma dádiva divina, que só as mulheres puras podem experimentar. A mulher que não deseja ter filhos é vista como egoísta ou “festeira demais” — o termo exato usado no filme é “social butterfly”. Isso tudo é irônico, considerando que a própria diretora Lois Weber não teve filhos.

Se a ideia do filme, como mostrado no próprio aviso antes da exibição, é tratar de controle de natalidade e planejamento familiar, ele acerta no subentendido: se o casal Walton tivesse simplesmente dialogado, ele saberia que ela não queria ter filhos. Colocar o diálogo como uma forma de controle de natalidade é válido, mas é complicado em contextos demasiado patriarcais, como o ano de 1916 e, infelizmente, algumas famílias ainda hoje.

(Imagem: reprodução)

Qual a mensagem que “Where are my children?” quer passar? Aborto não deve ser considerado uma forma de controle de natalidade, mas isso é válido apenas para os ricos. Os pobres podem ter acesso aos métodos contraceptivos — mas não ao aborto, por favor. Sim, o filme consegue ser ao mesmo tempo anti-aborto e a favor dos anticoncepcionais. Ele acerta ao defender o controle de natalidade, ainda que use a eugenia como argumento, mas erra ao condenar o aborto. Mas lembre-se: em 1916 eles eram bem menos eficazes que hoje.

Apesar de ter uma moral borrada, tecnicamente o filme é bom, com algumas cenas usando efeitos especiais de double exposure. Lois Weber costumava fazer filmes sobre assuntos sociais, assim como Dorothy Davenport. Seu mais conhecido filme é “Suspense”, de 1913. Lois foi uma grande cineasta, com inventividade e domínio técnico, mas que, em “Where are my children?” se perde em sua justificativa. Ela deu, ao menos, o pontapé inicial para dialogar sobre planejamento familiar — um diálogo que continuou sendo ignorado por Hollywood até 60 anos após o lançamento de “Where are my children?”.

O que não podemos é perder a noção de que chegamos longe, mas precisamos continuar lutando para que aqueles que querem trazer de volta a mentalidade de 1916 não vençam.

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