Years and Years: a minissérie que ousa desvendar o futuro

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readAug 4, 2019

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Sim, o futuro é sombrio. E já bate à porta.

(Imagem: reprodução)

“Years and Years” tem tudo o que encontramos na sociedade atual. Pessoas LGBT, deficientes, de todas as raças e orientações sexuais. Casais LGBT, casais multirraciais, mães e pais solo. E também professores terraplanistas, robôs sexuais, gente que acha que ativista só causa problema, crianças que se dividem entre a ignorância do desenho animado antigo e o angustiante noticiário. E uma representante do pior da “nova” política: Vivienne Rook (Emma Thompson), que se torna popular após uma declaração xenofóbica e polêmica e entra para a política, posando de vítima da censura do politicamente correto e se apresentando como opção para os que estão cansados das velhas caras.

A vida de quatro irmãos britânicos adultos da família Lyons é acompanhada durante anos e anos, começando em 2019, quando Rosie (Ruth Madeley), chefe de cozinha cadeirante, tem um filho. Danny (Russel Tovey), que trabalha com habitação, se apaixona por um refugiado da Ucrânia. Edith (Jessica Hynes) famosa ativista, se desilude após ser contaminada por radiação, e passa a querer apenas “ver o circo pegar fogo”. Stephen (Rory Kinnear), bem-sucedido pai de família, perde tudo e arrisca mais ainda.

Embora faça previsões, “Years and Years” mostra muito do que já está acontecendo: derretimento das camadas polares, retirada de direitos de grupos minoritários, imigrantes lutando pela vida em barcos superlotados, bancos indo à ruína e pânico nas ruas como no recente “Corralito” da Argentina, em 2011 (segunda imagem abaixo). É uma época de tormenta, com ataques nucleares, quebra de bancos, perda de economias e desemprego. De repente, pessoas bem preparadas precisam trabalhar em empregos alternativos e simplórios para se sustentar. — e precisam de mais de um emprego ao mesmo tempo para manter um padrão de vida médio. As tragédias da atualidade têm tudo para se espalhar nos anos vindouros e, apesar de a série focar na Europa, sabemos que o que acontece em uma região do planeta afeta as demais, seja como consequência, seja como nefasta inspiração. Mesmo com tantas mudanças, algumas questões de “Years and Years” são bem conhecidas, como o choque entre gerações e a traição entre cônjuges.

(Imagem: aplicativo TV Time)

São mostrados inclusive campos de concentração para refugiados e desabrigados que são vendidos como sábia “seleção natural”, uma realidade que está muito próxima de nós — e também vemos que ser conivente com isso ou mesmo fazer parte deste pesadelo é, sim, uma escolha, em geral feita pelas pessoas mais comuns do mudo, pessoas que nos cercam. A história sempre se repete, nós é que escolhemos esquecê-la e insistir no erro.

Nos debates políticos, Vivienne se mostra mal preparada e, ao ser contestada, se faz de vítima. Ela não participa da maioria dos debates e usa apenas canais próprios para falar com os eleitores. Ela também apela para a preservação da moral e dos bons costumes para conseguir eleitores, dizendo que a modernidade está expondo crianças à pornografia. Ela é uma forasteira da política, uma show-woman sem escrúpulos. Ela conquista os desinteressados, os desesperançados, os que no começo só acham graça do seu jeito e tratam o voto sem seriedade. Quando chega ao poder, cria narrativas para prender seus críticos, trata a imprensa como inimiga do povo e governa através do caos. Você já viu algum político como Vivienne Rook?

(Imagem: reprodução)

“Years and Years” foi chamada, já na sua estreia, como uma mistura de This is Us com Black Mirror. Entretanto, suas previsões realistas transformam a série de drama em um terror que nunca foi tão real, fazendo dela um produto único no audiovisual atual. Na década de 1930, alguns filmes foram capazes de prever a guerra que estouraria no final da década, notadamente o norte-americano “A Marcha dos Séculos” (1934) e o britânico “Daqui a Cem Anos” (1936). Só descobriremos o que a série acertou ou errou quando o futuro se tornar presente… se chegarmos lá.

Apesar de tanta desgraça, a série também dá sua colherada de esperança. Em “Years and Years”, a resistência é palavra feminina por excelência, liderada por mulheres. Edith, apesar de desiludida, não se deixa entorpecer e age para mudar o mundo. Bethany (Lydia West), filha de Stephen, usa a tecnologia para o bem. Rosie mostra que cada ato importa, por mais reservado que seja: que a mudança começa com cada uma de nós.

Um dia Danny diz que se lembrava dos dias em que o noticiário era maçante, e não assustador, e que a geração deles — os millennials, como eu e talvez como você — nasceu em uma pausa de paz no mundo. Uma paz que se esvai aos poucos, com a normalização e banalização do mal, da falta de empatia, da mediocridade como algo a ser celebrado, do ódio.

Anos depois do ataque nuclear do primeiro episódio, Muriel, a avó dos irmãos protagonistas, se pergunta por que disseram que a vida deles não seria mais a mesma depois do evento trágico. E é essa a questão: muitas vezes estamos tão absortos em fazer nossas tarefas cotidianas que não notamos o mundo mudando de maneira irreversível — e quando notamos, já é tarde para fazermos alguma coisa. Tomara que já não seja tarde demais.

(Imagem: Instagram Um Filme Me Disse)

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