Divagações Sobre a Terra do Nunca

Pedro Gaya
P / G Publications
Published in
5 min readNov 26, 2020

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Peter Pan bronze statue by George Frampton (1912) beside the long water in Kensington Gardens (London).

Quando tratamos de entender fenômenos hipotéticos, a elaboração de uma ficção que leva o fenômeno às últimas consequências é A ferramenta para entendermos do que estamos a tratar. Quando invocamos a vontade de repetir algo eternamente, a vontade de viver para sempre, … sempre estamos nos submetendo ao exercício da imaginação. Ora, para que tenhamos plena consciência do que se passa, o que precisamos é de uma narrativa suportada pela lógica da verossimilhança e pelo rigor teórico, o quanto possível.

Podemos proceder de duas formas: construir a ficção a partir da premissa hipotética definida, ou tomar uma ficção para destrinchar sua(s) premissa(s) hipotética(s). Quer dizer, podemos proceder da ideia à narrativa ou da narrativa à ideia, conforme uma ou outra nos estejam disponíveis. No caso deste texto, vindo de uma das nada raras ideias de banho, explorarei duas ideias:

  1. A imortalidade sem envelhecimento.
  2. O ímpeto da repetição eterna.

Não deve surpreender, tendo em vista o título, que trataremos de levar a ficção às ideias; utilizando o mundo da Terra do Nunca de Peter Pan. O nosso mundo de fantasia não tem seu nome injustamente, pois é feito em eterna repetição. Ora, pois, todos são eternos e eternamente caracterizados. Temos outras hipóteses neste mundo também: o crocodilo do relógio, voar, fadas, o capitão gancho, … . No entanto, elas não serão relevantes aqui e, portanto, buscarei isolar seu significado.

Peter Pan é um epítome, um arquétipo estabelecido da infância. Ora, o autor bem sabe disso, pois nos diz: “Todas as crianças crescem — menos uma”. Vemos bem nesta frase que temos um caso específico da ideia de imortalidade. Na mesma página encontramos já outro trecho que nos mostra nossa segunda ideia: “Ah! Por que é que você não pode ficar assim para sempre?”. Esta frase explica de fato a vontade que muitas vezes temos de nos dar uma situação eterna. Sair de um conforto, mesmo que para outro, envolve algo no meio e este meio é algo que podemos temer. Ou talvez tenhamos tamanha felicidade com uma situação específica que possamos exclamar poderia ficar assim para sempre!. Ora, temos dois casos: no primeiro caso temos a situação de querer, no segundo temos a situação de aceitar, mas esta distinção não importa, pois o objeto que contempla é o mesmo; e é este que nos é relevante.

Tomemos então a primeira ideia. É mais comum imaginar a imortalidade do que um eterno estado de retorno. Logo, certamente ela é mais cobiçada que a nossa segunda ideia. Dito isto, ela acaba se metendo em muitas das mesmas questões. Segue logicamente assim: para se repetir algo para sempre, devemos existir para sempre. Assim, consideremos que a segunda ideia se refira somente ao tempo de vida comum de um humano, de forma a considerarmos o assunto da forma mais ampla possível. O que temos, pois, é a imortalidade como já enunciamos. Não apenas na Terra do Nunca, como em Dorian Gray, em Dracula, dentre outros, nos deparamos com imortais. Coisas diferentes chamam atenção em cada caso, o lorde Grey deseja manter a sua juventude e beleza, Dracula está amaldiçoado (apesar de não sabermos claramente como) e, na Terra do Nunca, o que nos salta aos olhos são dois elementos: a coletividade e a infância.

Na Terra do Nunca todos são imortais. Logo, este mundo poderia nos servir à pergunta: e se fossemos todos imortais? No entanto, ele não seria adequado, pois o seu fluxo de tempo não é compatível com o tempo do mundo real, e muito menos o é o estilo de vida. Apesar disso, no caso da terra do nunca não temos o famoso caso em que um imortal assiste a morte de todos os seus conhecidos, o que certamente ajuda o fator infância a permanecer. Quer dizer, o principal problema para a psique do imortal foi removido na Terra do Nunca. Por definição, este mundo está pronto para manter o loop de tempo que é o eterno retorno, onde nada realmente muda.

Ora, já apontamos a primeira problemática da imortalidade, mas há uma outra que é inevitável, independente das demais condições. Um economista, em especial, já está pronto a aplicar a lei da utilidade marginal decrescente. É uma explicação simples e intuitiva que, em termos matemáticos mais complexos, se mostra também nas derivadas parciais que podem ser aplicadas sobre uma função de utilidade. Dito isto, a lógica não matemática nos bastará aqui. Fundamentalmente, devemos admitir que geralmente quanto mais alguém tem de algo, menos este algo é preferido à algo mais. Da mesma forma, quanto mais alguém tem de vida, menos deseja a vida. Aos 10 anos, 1 ano é 10% da da sua vida, mas aos 1000 anos, 1 ano é 0,1% da sua vida. É bem fácil observar a perda de importância relativa de um ano quanto mais alguém vive. De certa forma, a imortalidade seria um fenômeno excepcional na economia, pois ela eliminaria a escassez de tempo — justamente a escassez que é O tema da economia. Dito isto, um indivíduo ainda teria uma limitação, pois o seu tempo infinito não implica uma presença infinita. A pior parte é que a abundância de tempo certamente seria um condutor do tédio e, portanto, da letargia. Invocando aqui um outro mundo de ficção, talvez a nossa plena imortalidade acabasse por imitar a Arda (onde fica a Terra Média), da obra de Tolkien. Os elfos deste mundo desaparecem com o tempo, mas suas almas persistem na letargia da terra. Talvez fosse este o destino de uma humanidade imortal, cansar, parar e sumir na natureza, tecnicamente ainda viva, mas não exatamente.

Vista a primeira ideia, procedamos à segunda. O repetição de um momento no tempo de uma vida humana. Já distinguimos algumas semelhanças com a imortalidade, mas permanece o fato de que mesmo assim permanece aqui também a aplicação da lei da utilidade marginal decrescente, mas não apenas. A repetição, mais até do que a imortalidade é condenada a ser estritamente a mesma coisa, ou seja, não há nenhuma escapatória inovativa para o ânimo de uma pessoa que vive em uma eterna repetição. Aliás, talvez seja por isso que certas rotinas de trabalho sejam tão abominadas. No caso da Terra do Nunca, a repetição é o fator de concessão aos desejos de Peter Pan. Ou seja, é ela que permite que ele seja uma criança para sempre. Logo, por definição, a repetição eterna é também a ferramenta de permanência, em oposição à inovação, à produção, à conquista ou qualquer outro tipo de mudança. Ela é uma categoria especialmente espinhosa, do medo e da precaução. Um é tolo e o outro sábio, um desejo que é a própria da faca dois gumes.

Livro referência:

BARRIE, J. M.. Peter Pan. Trad. Ana Maria Machado. São Paulo: Moderna, 2ª ed, 2007.

Publicação original.

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