A eugenia é muito mais presente na sua vida do que você pensa

A biologia atual existe por conta da ideia, hoje absurda, de que era preciso melhorar a humanidade através da seleção da melhor "raça"

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4 min readMay 9, 2018

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Por Rodrigo Andrade da Cruz

Gráfico de obra de Ronald Fisher que demonstra as parcelas de fatores que contribuiriam para a estatura dos indivíduos. A primeira barra representa um dos pais; a segunda, a contribuição de ambos; a terceira, todas as qualidades de todos os demais ancestrais. A última, o total da herança de natureza genética

Quando se fala em eugenia, para a maior parte das pessoas ocorre apenas a imagem de nazistas eliminando pessoas de “raças humanas” que eles achavam inferiores e criando verdadeiros exércitos de homens fortes, inteligentes e loiros de olhos azuis. Por isso, muitos hoje chamam a eugenia, a ciência do “melhoramento humano”, de pseudociência.

O que a maioria das pessoas não sabe é que a eugenia não é uma criação dos nazistas e teve grande influência no meio acadêmico de diversos países em todos os continentes durante muitas décadas. Essa notoriedade se refletiu na fundação de sociedades científicas, periódicos, livros didáticos, políticas de saúde pública, de imigração, entre várias outras. Pode-se dizer que a eugenia era uma das ciências mais prestigiadas do início do século XX, realizando inclusive grandiosos congressos internacionais em Londres (1912) e Nova Iorque (1921 e 1932).

Seus maiores expoentes — Francis Galton, Karl Pearson e Ronald Fisher — obtiveram grande destaque e prestígio científico que perduram — sim — até os dias de hoje. Em sua busca por fundamentar as teorias eugênicas, claramente racistas, eles acabaram introduzindo nas ciências naturais diversas ferramentas da estatística — hoje um mecanismo fundamental para qualquer estudo biológico, desde a ecologia dos sapos da Mata Atlântica até o crescimento das células de câncer.

Ronald Fisher em 1912: aos 22 anos, foi membro do comitê organizador do I Congresso de Eugenia, em Londres

No início do século XX, ocorreram na Inglaterra intensos debates sobre os mecanismos de hereditariedade e suas vinculações com o darwinismo, o conjunto de ideias advindo da teoria da seleção natural de Charles Darwin. Uma corrente de naturalistas, denominada gradualista, hesitava em aceitar os preceitos mendelianos, pois estes previam saltos descontínuos em uma geração (ervilhas amarelas gerando ervilhas verdes, por exemplo), sem o gradualismo das transformações proposto por Darwin. Segundo eles, não havia composição possível entre a genética mendeliana e o darwinismo. Por sua vez, a corrente denominada saltacionista aceitava a genética mendeliana, mas questionava os fundamentos darwinistas de evolução.

É nesse contexto que o trabalho de Ronald Fisher se destaca. Ele é considerado um dos principais responsáveis pela formulação da síntese neodarwiniana, ao utilizar a estatística como conciliadora de ambas as correntes — fundamentando assim um dos pilares da ciência moderna contemporânea. Em seu livro considerado mais importante, The Genetical Theory of Natural Selection, Fisher dedica mais de um terço das páginas apenas a “eugenia” e “melhoramento humano”.

Grande parte da formulação teórico-conceitual da estatística e da genética de populações foi elaborada, veja só, por conta da preocupação com o fenômeno que Fisher denominou de fertilidade diferencial. Para ele, a maior taxa de reprodução dos “inadequados” em comparação às das “melhores linhagens” humanas era a maior causa dos problemas que a humanidade enfrenta e enfrentou ao longo de toda a história.

Ilustração publicada em 1933 intitulada: "Nos dias de hoje os criminosos estão realmente se espalhando entre o povo alemão". O número indicado em cada imagem identifica a suposta taxa de natalidade de diversos grupos familiares (de cima pra baixo e da esquerda para a direta: pai criminoso, casal criminoso, pais de crianças retardadas, a família alemã, pais do estrato educado). FONTE: Otto Helmut, Volk in Gefahr (…) (Munich: Lehmann, 1933), 31, apud Bock, "Racism and Sexism", 413)

O exemplo da eugenia mostra que a ciência é uma atividade humana e, como tal, sujeita a objetivos de classes, instituições, ideologias e forças políticas. Da forma como se desenhou na primeira metade do século XX, com concursos de “melhores famílias” e esterilizações involuntárias, é hoje algo menos provável de se repetir.

O estudo de como a eugenia surge, se oficializa e se espalha pelo meio acadêmico em todo o mundo, porém, é indispensável para entendermos como essa tradição humana chamada ciência pode se comportar em determinadas situações.

Além disso, o estudo do que foi a eugenia é importante para entendermos diversas heranças eugênicas em nossa sociedade atual. A ciência do “melhoramento humano” deixou legados em diversas áreas — da educação escolar até a medicina de ponta — que ainda precisam ser analisados e discutidos pelos historiadores da ciência.

Como dizem nossas professoras no curso de História da Ciência, daqui a 200 anos as pessoas podem achar ridículo como tratamos das bactérias, usando antibióticos que matam, inclusive, os microorganismos benéficos à nossa saúde e deixam as bactérias prejudiciais ainda mais resistentes. Só o tempo vai mostrar o quanto acertamos em nossas escolhas. E provavelmente não estaremos mais vivos para conferir.

Da mesma forma, enquanto já há muito tempo os estudos sociais mostram que a pobreza e o subdesenvolvimento são fruto de contingências históricas e econômicas, no início do século passado a questão dos negros e dos judeus, por exemplo, era tratada nos círculos mais sérios como um problema inerente a essas “raças”, e não ao colonialismo, à escravidão e à perseguição. Se hoje seria absurdo algo como a eugenia, naquele contexto havia todos os elementos para considerá-la, sim, uma ciência.

Para saber mais

Cruz, Rodrigo Andrade da. "Ronald Fisher e a eugenia: estatística, evolução e genética na busca da civilização permanente". Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.

Kevles, Daniel J. In the name of eugenics: Genetics and the Uses of Human Heredity. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1985.

Rodrigo Andrade da Cruz é biólogo, mestre e doutor em História da Ciência pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC-São Paulo e professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP)

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