Pompêo do Amaral: da criação do primeiro curso de nutrição à batalha contra o "problema do leite"

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Circumscribere
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4 min readJan 20, 2018
Laboratório no Instituto Profissional Feminino, em São Paulo, em 1935

Quem compra o leite na caixinha em qualquer supermercado hoje não imagina que esse produto já foi causa até mesmo de tuberculose. Não o leite em si, mas a contaminação microbiana, bastante comum nos anos 1940. O médico Francisco Pompêo do Amaral (1907–1990) desafiou os usineiros da São Paulo da época, que descuidavam da higiene e ainda adicionavam formol e outros produtos de forma a alterar as propriedades do leite.

Na sua luta, Pompêo do Amaral criou o primeiro curso no campo da alimentação e nutrição no Brasil, que tinha como objetivo formar técnicas em alimentação para atuarem em refeitórios, lactários e hospitais. A pesquisadora Maria Lucia Mendes de Carvalho não só estuda os arquivos deixados pelo médico, como trabalha para a preservação do acervo de Centros de Memória do Centro Paula Souza, instituição em que é professora desde 2000. Nesse bate-papo, ela fala um pouco de sua pesquisa, cuja publicação mais recente é parte do dossiê Images and Instruments in the History of Science, que compõe o volume 20 da Circumscribere.

Pompêo do Amaral, em foto de 1948

Qual era o problema que o leite apresentava naquele período?
Na década de 1940, a maioria da população vivia no campo, e o leite de origem animal era consumido regionalmente, certamente sem o controle higiênico adequado e recomendado pelas autoridades sanitárias. Esse leite apresentava contaminação microbiana, e talvez por esse motivo a tuberculose fosse considerada na época a “peste branca”. O médico Francisco Pompêo do Amaral tinha conhecimento da relação dessa doença com a qualidade do leite, pois no seu arquivo pessoal encontram-se documentos de sua relação com o Dr. Clemente Ferreira, presidente da Liga Paulista contra a Tuberculose, em eventos públicos.

Como a industrialização do país aumentou esse problema?
Quando o país começa a se industrializar, aumenta o consumo de leite e de usinas de pasteurização na cidade. No entanto, na década de 1940 os proprietários dessas usinas chegavam a empregar formol como conservante. Inclusive, esse composto é um dos requisitos a serem checados no leite até hoje, para identificar produto fraudado. Quando Pompêo do Amaral se recusou a participar da primeira Jornada de Bromatologia (bromatologia refere-se a análises dos alimentos), ele fez uma declaração sobre a adição de formol no leite pelos usineiros, em 1946, como eu mostro no artigo desta edição da Circumscribere. [1]

Quando isso mudou?
O problema de contaminação do leite foi amplamente discutido pela imprensa. No final da década de 1960 surgiu o leite B, com destaque para a qualidade diferenciada de obtenção desse leite no produtor, com condições higiênicas padronizadas nos estábulos. O leite C continuou sendo oferecido à população, com preço inferior, e sem o mesmo rigor nas instalações para a coleta do leite no produtor. Eu sou engenheira agrícola e me lembro bem das visitas que fiz a produtores de leite tipo C e tipo B na disciplina de Zootecnia na década de 1970. Na década de 1980 ainda tínhamos os leites tipo C e tipo B. Nessa época, o leite era fornecido em saquinho plástico, e essa embalagem começou a ser investigada como fonte de contaminação. Daí vieram novas embalagens, entre elas a Tetra Pak (hoje reciclável), a mais empregada pelos produtores de leite.

Pompêo do Amaral com a diretora Laia Pereira Bueno, a professora Debble Smaira e estudantes da primeira turma de Dietética

Como os objetos expostos no Centro Paula Souza contribuem para o ensino e a compreensão da ciência do período? O espaço é aberto para não-alunos do Centro?
Nós temos o site de Memórias e História da Educação Profissional, que traz eventos realizados sobre estudos e pesquisas empregando os objetos que são expostos nos Centros de Memória do Centro Paula Souza. Esse site traz ações educativas relacionadas com capacitações de professores que desenvolvem projetos de pesquisas nas escolas técnicas e em faculdades de tecnologia da instituição (Clubes de Memórias) e as exposições que realizamos para divulgar esses espaços do patrimônio histórico educativo e do patrimônio cultural da ciência e tecnologia na educação profissional. Assim como publicações de livros, catálogos[5] e obras raras da educação profissional são divulgadas no site para estudantes, professores e pesquisadores. Os Centros de Memória não são espaços abertos ao público, mas podem ser solicitadas visitas agendadas.

Saiba mais:

[1] Maria Lucia Mendes de Carvalho. Milk — A National Problem: scientific research instruments in professional education in São Paulo (1940–1955). Circumscribere v. 20, 2018.

[2] Francisco Pompêo do Amaral (org.) Os cursos de Dietética. Superintendência do Ensino Profissional do Estado de São Paulo, 1939.

[3] Maria Lucia M. de Carvalho. Desvendando raízes e retratos no campo da alimentação e nutrição no Brasil: de Francisco Pompêo do Amaral ao Centro Paula Souza. Tese de doutoramento. FEAGRI/UNICAMP, 2013.

[4] Maria Lucia M. de Carvalho. Francisco Pompêo do Amaral: sujeito social e seus objetos de ensino em prol da alimentação e nutrição no Brasil (1938 a 1941). Revista Linhas v. 15, n. 28, 2014.

[5]Maria Lucia M. de Carvalho. Patrimônio Cultural da Química e da Dietética no Centro de Memória da Escola Técnica Estadual Carlos de Campos (SP): catálogo da pesquisa sobre a arquitetura escolar, artefatos e suas possibilidades de musealização. 2017.

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