Questão de perspectiva: arte e ciência na pintura

Uma proposta de abordagem do Renascimento e do Rococó

CircumEditor
Circumscribere
5 min readMay 2, 2018

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Detalhe da obra de Andre Pozzo na Nave da Igreja dos Jesuítas de Roma, de 1694

Por Magno Mello

A pesquisa em história da arte implica problemas comuns a toda investigação das Ciências Humanas. No artigo que assino no volume 20 da Circumscribere, por exemplo, precisei aliar conhecimentos da história da ciência aos da história da arte, minha especialidade de origem. Isso porque o tema das chamadas pinturas de falsa arquitetura e os tratados de pintura, de arquitetura e de perspectiva falam tanto sobre a parte artística, ao tratar de técnicas de pintura e desenho, quanto a científica, à medida que exige cálculos bastante específicos na construção de espaços fictícios.

Ter consciência de que esse tipo de estudo exige essa interface entre as áreas é essencial para investigar as decorações com grandes distâncias de perspectiva criadas entre os períodos do Renascimento (séculos XIV a XVII), e do Rococó (XVIII a XIX). Portanto, iniciei a investigação sobre a pintura de falsa arquitetura (a quadratura) estudando tratados desses períodos, particularmente as primeiras lições sobre a representação perspéctica do espaço.

Foi possível compreender e captar a divisão de espaços em profundidade, a organização da imagem num suporte plano (ou curvo) e as técnicas da perspectiva. Além de levantar questões fundamentais sobre óptica e scenographia, as projeções principais, a perspectiva paralela a qual as ortogonais nunca se encontram no infinito, a perspectiva a spina e as construções pompeanas da Antiguidade.

Entender o processo teórico era fundamental para convertê-lo nos procedimentos artificiais da construção destes espaços que tanto iludem nossos olhos. Ter isso em mente me permitiu uma maior aproximação com o tema, obrigando-me a fugir de uma análise mais histórica, iconográfica ou sociológica voltada para as pesquisas sobre a religiosidade, abordagem mais comum de se encontrar. Assim, pude me aproximar de uma relação funcional com tais espaços da arquitetura picta.

Estampa 12 do Compendio Matemático, de Tomas Vicente Tosca (tomo VI: 232, estampa 12)

Uma visão jesuíta do mundo

Era importante para os quadraturistas — pintores-decoradores que constroem espaços arquitetônicos falsos a partir de pressupostos perspécticos — tomarem em consideração a ornamentação interna do edifício: a talha decorativa, as imagens nelas apoiadas, as pinturas de painéis em paredes, as pinturas de teto, os retábulos de altares, enfim, um complexo artístico extremamente amplo e diverso.

Por isso, durante a minha pesquisa, era importante compor um exame dos principais tratados de perspectiva entre os séculos XVI e XVII no contexto europeu, não esquecendo as consequências deste universo teórico ao ambiente português (com reflexos no Brasil Colonial) entre os séculos XVIII e XIX. Uma investigação ampla e que ainda está longe de se concluir.

Neste contexto pictórico tão complexo e dinâmico, as preocupações com as questões técnicas passam pelos estudos sobre perspectiva. A obra do jesuíta Andrea Pozzo tornou-se para mim o centro das preocupações não apenas pelo seu conteúdo, mas pela grande difusão em todo o mundo a partir do princípio do século XVIII na Europa, Américas e Oriente.

Cúpula da Igreja de Santa Andrea Della Valle, de autoria Giovanni Lanfranco, construída entre 1625 e 1627 em Roma. Foto: Luigi Mancini/Wikimedia Commons

Ampliando os conhecimentos sobre estas fontes teóricas, me deparei com outros tratados que seriam igualmente importantes. Pode citar-se os três volumes do Tratado sobre Perspectiva Pratica Necessaire (…) do jesuíta Jean Le Dubreuil, publicado pela primeira vez em 1642 e numa segunda edição em 1679. Ver estes espaços geométricos construídos e associá-los a um universo cultural tendo a representação perspéctica como uma linguagem fez aproximar-me de estudos específicos como os de Panofsky, Hubert Damisch, Decio Gioseffi, Giulio Bora e ainda Luigi Vagnetti e Rocco Sinisgalli.

Cabe destacar que muitos se interessaram por estas questões matemáticas e geométricas da projeção espacial num plano e que instrumentalizaram este processo para uma melhor atuação da sua mensagem pedagógica. A perspectiva é o veículo efetivo da comunicação e da representação visual, já que a Companhia de Jesus procurava constantemente levar até os fiéis uma composição ordenada e sistemática do universo, segundo os seus próprios ideais de conduta e de valores. Para Inácio de Loyola, fundador da ordem, a meditação estava identificada com a memória artificial, e não com a memória natural. A perspectiva, portanto, caía como uma luva.

Tratados e mais tratados

Foram muitos os tratados publicados a partir de então, desde Le Due Regole della Prospettiva de Jacopo Barozzi, (1507-1573), passsando por Da Perspectiva Pingendi, de Piero della Francesca, compilado no fim do século XV passando por De Artificiali Perspectiva, de 1505, por Jean Pèlerin (1435-1524), até Paradossi Per Praticare la Prospettiva Senza Saperla (…) por Giulio Troili, em 1672 e a segunda edição em 1683 com o título Paradossi Overo Fiori e Frutti di Prospettiva Pratica parte terza. Isso para ficar em alguns poucos.

Sala Delle Prospetiva, em Roma: obra de 1519 de Baldassare Peruzzi. Foto: prilfish/Flickr

Neste segmento, nosso percurso segue para a primeira metade do século XVIII, quando Portugal conhece um momento propício: as condições financeiras com o novo ciclo econômico da Capitania do Ouro e a Academia Portuguesa em Roma, funcionando entre 1718 e 1728.

No que se refere ao universo da tratadística portuguesa, cite-se aqui de modo espetacular o Tratado de Perspectiva escrito por Inácio Vieira durante o período em que lecionava no Colégio de Santo Antão, em Lisboa.

O desenho perspectivado inovou de forma determinante a produção da arte figurativa, pois instituiu a relação de distância entre as figurações e o fruidor. Era necessário criar um modo de medir as distâncias. Entender a pintura ilusionista, relacioná-la com as disposições teóricas. Era também um modo de conhecer esta vastidão pictórica de grande sabor ilusório.

Para saber mais:

Mello, Magno. "Perspectiva Pictorum — um exercício de ilusionismo arquitetônico no Tempo do Barroco". Circumscribere v. XX (2018): 61–111.

Magno Mello é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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