Unicórnios, dragões e monstros marinhos: animais fantásticos habitavam a ciência

CircumEditor
Circumscribere
Published in
4 min readFeb 22, 2018
Unicórnio [Reprodução Historia animalium]

Obra do Renascimento mostra como o conhecimento em um período só pode ser analisado dentro de seu próprio contexto

Por Fabiana Dias Klautau

Pensando nos procedimentos e métodos utilizados pela Zoologia contemporânea para o estudo dos animais, seria bem estranho encontrar um cientista interessado em bestas como unicórnios, dragões, lâmias e monstros marinhos.

Mas entre os séculos XVI e XVII, a natureza era vista e estudada de modo muito particular e os estudiosos, chamados de filósofos naturais, geralmente polímatas interessados em diferentes tipos de conhecimentos, não se limitavam apenas em descrever características anatômicas, mas buscavam conectar os animais a todo tipo de assunto: distribuição geográfica, nome do bicho em diferentes línguas, alusões literárias, uso na medicina, na farmacologia e na culinária, lendas, fábulas, menções bíblicas, emblemas.

Monstro marinho [Reprodução Historia animalium]

De fato, autores daquela época queriam apresentar aos seus leitores todo tipo de informação que poderiam reunir, especialmente compilando descrições de autoridades do passado, como Plínio, o Velho (23 d.C–79 d.C.), e Aristóteles (384 a.C–322 a.C.). Embora pareça, aos olhos contemporâneos, uma atividade insana, visto que cada vez mais compreendemos o estudo dos animais e de suas partes de maneira especializada, as obras que se dedicavam à “História dos animais” elaboradas durante o Renascimento nos levam a profundas reflexões sobre as diferentes formas de se fazer ciência, em distintas épocas.

Um dos mais importantes filósofos naturais do século XVI e que contribui de maneira significativa para entendermos a importância de pensar a Ciência em seu próprio tempo foi Conrad Gesner.

Seu Historia animalium (1551) exerceu uma inigualável influência em obras de outros autores do mesmo século e dos posteriores. Junto ao seu Icones animalium (1553), livro dedicado às imagens de animais, são mais de 4 mil páginas de texto descrevendo bichos, ultrapassando mil ilustrações. Em seu trabalho, as imagens vinham não apenas como suplemento ao texto, mas como uma via de informação visual.

Peixe bispo [Reprodução Historia animalium]

Um dos focos de minha pesquisa é justamente a análise das imagens e sua relação com o texto nessas obras sobre animais. Outros aspectos que são estudados referem-se à presença de um tipo de linguagem que relaciona imagem e conceito, reunindo elementos figurativos e reflexivos conhecidos como “emblemas”; e a relação entre essas obras com a expressão das imagens de animais nos Bestiários Medievais, um tipo de obra que Gesner utilizou como fonte.

Sátiro [Reprodução Historia animalium]

Atualmente, diversos significados são atribuídos ao termo “emblemático”, geralmente relacionados a ideia de misterioso ou de grande relevância histórica e/ou social. O fato é que se olharmos para essas obras do século XVI e XVII, e aqui refiro-me especialmente às obras sobre animais, o conceito de emblemático pode ser empregado para designar textos nos quais o conteúdo não se restringia apenas a descrições sobre bichos, mas que abrangia toda uma rede de informações que de certa forma traria ao leitor a “verdadeira história animal”, uma forma singular de enxergar o mundo e a natureza.

Um outro elemento a ser considerado aqui, e que era de fundamental importância para os filósofos da natureza, é a crença religiosa que permitia, através da fé, reconhecer na natureza a arte divina e se deliciar com as maravilhas criadas pelo “Arquiteto Supremo”, impossíveis de a raça humana intervir.

Dragões [Reprodução Historia animalium]

Contudo, na obra de Gesner podemos perceber desde uma tentativa ousada do autor de abarcar simplesmente tudo sobre todos os animais da natureza, inclusive monstros de existência incerta, até seu cuidado em inserir imagens de qualidade que representassem o mais fielmente possível o bicho descrito, num universo representado por uma grande rede de relações, onde todas as informações podem ser comprovadas pela “lei da certeza moral” (ou seja, pela simples autoridade e credibilidade da testemunha que descrevia a besta). E onde todo animal é possível de existir, inclusive monstros marinhos, mantícoras, sátiros, esfinges, lâmias e unicórnios.

Lâmia [Reprodução Historia animalium]

Fabiana Dias Klautau é bióloga, mestre em História da Ciência , doutoranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC-São Paulo e membro do grupo História da Ciência e Ensino do mesmo Programa.

Gostou? Clique quantas vezes quiser nos aplausos abaixo ou ao lado.

Comente aqui embaixo o que achou desse texto.

Siga Circumscribere no Medium, no Facebook e no Twitter

--

--