Léa Linhares e a força das mulheres

Clarissa Cé
Sextante
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10 min readJan 30, 2017

A primeira vez em que foi permitida a presença olímpica de mulheres foi em 1900, em Paris. Eram 22 contra os 997 homens. O uso de anáguas, meias com cinta-liga e chapéus era obrigatório para competir nas categorias de esportes selecionados por serem mais delicados e não possuírem contato físico: tênis e golfe. Elas não recebiam medalhas, apenas um certificado de participação. Mulheres representarem 45% dos atletas nas recentes Olimpíadas do Rio de Janeiro é uma conquista. Trata-se da maior participação feminina na história dos Jogos Olímpicos.

Pôster dos Jogos Olímpicos de 1900, em Paris. Fonte: Wikipédia

Silvana Goellner, pesquisadora da UFRGS na área de educação física, com ênfase em história e gênero, detalha alguns dos fatores que levaram as mulheres a serem discriminadas no universo esportivo: “‘é um preconceito mesmo, de que algumas modalidades esportivas não são pra mulheres, porque o esporte foi pensado pelos homens e para os homens. Para as mulheres, o esporte, desde o início, foi um terreno a conquistar.” A força e a velocidade, essenciais em algumas modalidades, eram vistas como prejudiciais à saúde da mulher, que seria graciosa e delicada demais para essas atividades físicas.

Quando o esporte foi criado, a principal função da mulher era a maternidade. O exercício físico poderia prejudicar essa função, exclusiva da mulher, ou torná-la forte demais, o que também era problemático segundo Goellner. O exercício físico pode ser executado por mulheres, desde que não ultrapassasse determinados padrões. O esporte rompe com uma representação de feminilidade mais normatizada e, por isso, esse espaço não pertence a elas. Quando as mulheres se inserem no meio, se tornam uma ameaça — inclusive à superioridade física dos homens. Atrelado a isso, há uma discussão de preconceito mesmo. A mulher se empodera exercendo uma atividade física. Ela não modifica apenas o seu corpo, tornando-o mais forte, muda também os seus valores e o seu caráter. Torna-se a sua própria superação, uma versão melhorada de si mesma.

Isso está vinculado a um preconceito e uma representação de feminilidade que valorizava no século 20 a representação da mulher mãe. Hoje o ideal feminino está vinculado à beleza, à estética, à musa. Nos jogos olímpicos, mais do que falar das habilidades físicas, táticas, técnicas e conquistas das mulheres, se falou das pernas bem torneadas, dos estilos de roupa e dos seus relacionamentos afetivos. As mulheres que fogem de uma representação estética, de imediato, já se tornam suspeitas, principalmente em modalidades que exigem força, resistência e vigor, como as lutas. Será que é mesmo mulher? Qual é a orientação sexual dela? Ela está gorda. Ela é feia. Ela não pode ser uma atleta.

Teresa Almeida, jogadora de handebol da seleção angolana foi discriminada pelo seu físico. O jornal espanhol Marca tuitou uma manchete sobre ela, com emojis de batata frita, hambúrguer e um gato sorrindo. A nadadora americana Katie Ledecky foi chamada de “versão feminina de Michael Phelps” numa matéria do tabloide britânico Daily Mail. Já um comentarista da rede de televisão britânica BBC se referiu à final do judô entre a kosovar Majlinda Kelmendi e a italiana Odette Giuffrida como uma “luta de gato”. A nadadora húngara Katinka Hosszu quebrou o recorde mundial nos 400 metros, um feito que conseguiu “graças a seu marido”, segundo Dan Hicks, comentarista da rede de televisão estadunidense NBC. “Ele é a pessoa responsável por este triunfo. É preciso notar como mudou a motivação dela desde que começou a ser treinada por ele. É medo ou confiança o que a está ajudando neste processo?”. A nadadora já havia sido campeã da Europa em 2010, para citar apenas um dos seus títulos, dois anos antes que seu atual marido começasse a treiná-la e três anos antes de se casar com ele.

Durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, uma série de notícias diminuiu as atletas. Fonte: Twitter

“A mulher de um jogador dos Bears ganhou hoje uma medalha de bronze na Olimpíada do Rio”, tuitou o jornal estadunidense Chicago Tribune depois que a atiradora norte-americana Corey Cogdell ficou com o terceiro lugar na categoria de tiro ao prato. Uma manchete do jornal espanhol El Mundo apresentava as “gostosas internacionais nos Jogos Olímpicos do Rio”. Depois das reclamações dos internautas, o jornal mudou o título da galeria de fotos para “a lista de atletas olimpicamente atraentes” e considerou o problema resolvido. O jornal argentino Olé apresentou as atletas escandinavas como “as bonecas suecas”. Um “grupo de loiras e de olhos claros que chama a atenção de todos na Vila Olímpica”. Além do título, o conteúdo do artigo reforçava os valores estéticos das atletas: “loiríssimas, olhos claros por todos os lados e figuras estilizadas fizeram com que os presentes se virassem para vê-las. Isso não significa que outros países, como o nosso, não tenham suas belezas. Mas as bonecas suecas captam a atenção dos olhos humanos”. Sobram exemplos para ilustrar a sexualização, a objetificação e a diminuição das mulheres na mídia.

O jornal argentino Olé apresentou as atletas escandinavas como “as bonecas suecas”. Fonte: Olé

Um entrave machista

No Brasil, uma questão histórica alterou gravemente o desenvolvimento das mulheres em algumas modalidades. Em 1941, o Conselho Nacional dos Desportos promulgou o Decreto-lei, nº 3.199, de 14/04/1941, art. 54, especificado pela Norma 7/65. Essa normatização proibia as mulheres de participarem de algumas modalidades esportivas, que seriam impróprias a sua natureza frágil e materna. Esse decreto é reiterado em 1965, quando são nomeadas algumas modalidades que mulheres não podem participar, como rúgbi, futebol, corridas de longa distância, polo aquático, futebol de salão e lutas. Esse decreto ficou vigente até 1979. Ou seja, de 1941 a 1979, as mulheres eram oficialmente proibidas de participar dessas modalidades. As mulheres não serem mencionadas nas histórias oficiais não significa que elas não estivessem presentes, resistindo ao conservadorismo e ao machismo da época. No Rio Grande do Sul, a judoca Leia Linhares consegue a faixa preta em 1969 — mas não pode ser reconhecida oficialmente.

Léa Linhares com a faixa-preta (1969) Fonte: Centro de Memória do Esporte

“Comecei a treinar em 1964 e permaneci até 1971. Em 1969 eu consegui a faixa preta. Foi uma briga. Tive que me esforçar e estudar muito. Eu treinava, dava aula para crianças, estudava. Naquela época a mulher não lutava. Pela constituição, era proibido. Em 1988 isso começou a mudar.

Eu gostava muito de esporte. Uma vez vi um programa na televisão com uma mulher praticando judô. No colégio surgiu a oportunidade. O professor deu uma aula de graça e eu entrei de cabeça. Comecei a treinar com 13, 14 anos. Minha mãe sempre me apoiou em tudo. Eu gostava mesmo. Vim de uma classe bem pobre, às vezes faltava comida em casa. Com 14 anos meu professor me passou alguns alunos, quando eu estava com a faixa roxa, para me auxiliar com algum dinheiro. Depois que eu me formei no segundo grau, eu fui trabalhar e larguei o judô para fazer a minha vida, em busca do meu futuro.

O judô não era proibido, mas a luta em si, o corpo a corpo, era proibido. E o judô era considerado uma luta violenta, embora seja uma arte suave. Nos anos 60 uma moça praticando uma luta era inconcebível. As mulheres que ainda hoje praticam lutas, como o MMA, sofrem o mesmo preconceito, com relação a sua sexualidade. São machismos. Tudo isso eu sofri e foi muito forte. Para uma menina era difícil. Daí desisti.

Demonstração de defesa pessoal em clube de Porto Alegre (1964) Fonte: Centro de Memória do Esporte

A Federação Rio-Grandense de Pugilismo, na qual o judô era vinculado, não aceitou a minha faixa preta. Em 1969 foi criada a Federação Gaúcha de Judô e eu não fui registrada. Eu só insisti em tirar a faixa preta para provar que mulher era capaz de chegar a esse grau. Nos estados mais para cima já tinha uma mulher no jiu jitsu, mas aqui, para os gaúchos, uma moça praticando luta no meio dos homens era demais. São muito conservadores. E na época ou tu era homossexual ou tu andava muito com os homens, teus colegas. De uma maneira ou de outra, tu era taxada. Me lembro que nas aulas as meninas entravam e logo saíam. Por que? Eu permaneci porque queria provar que era capaz de tirar a faixa preta. Cheguei no topo e não recebi a colação de grau. Fui me decepcionando ao longo da minha trajetória com o tratamento. Eu sentia a discriminação e isso me desestimulou.

É tudo uma questão de incentivo. Sempre quis mais. Entrei querendo chegar no fim e cheguei, mas o não reconhecimento da faixa me deu um grande desânimo. Eu fui muito magoada na época. Tinha vergonha de dizer que era faixa preta. Ficava ouvindo piada e constrangimentos. Nasci na época errada. Tirei a faixa preta e permaneci uns seis meses ainda. Depois comecei a trabalhar e também queria voltar a estudar. Larguei de vez o judô. Enterrei mesmo. Não falava, não lembrava. Deletei da minha vida, como se não tivesse existido.

O esporte me influenciou em vários aspectos. O esporte te exige uma postura e tu acaba levando isso pra vida. Tu te torna independente. Te dá uma segurança, tu te valoriza. E tu sabe que é capaz. Tudo que eu planejei na minha vida hoje eu tenho. E eu retribuo sempre que posso. Me tornou uma pessoa melhor e mais segura. E isso afasta o homem. Eu sou viúva e meu marido dizia ‘teu único defeito é ser muito independente. Tu não precisa de mim.’ Então tu aprende a batalhar em tudo o que tu quer. E o esporte te dá disciplina, principalmente o judô. É uma tradição milenar, apesar de hoje a filosofia em si do esporte estar um pouco perdida. Acaba sendo mais competitivo. Os valores foram se perdendo ao longo do tempo.

Aloísio Bandeira de Melo entrega a faixa roxa à Léa Linhares. Ao fundo, Ricardo Gaston. (1967)
Fonte: Centro de Memória do Esporte

No começo dos anos 2000 começaram a me procurar para contar essa história. Aos poucos eu fui dando entrevistas. Também pelo Facebook reencontrei várias pessoas do judô. Um ex-presidente da Federação Gaúcha de Judô me perguntou se eu era a Leia, a primeira faixa preta aqui do estado. Fui convidada para participar dos churrascos e de algumas reuniões e, então, ano passado eu coloquei um kimono para treinar. Retornar foi muito difícil. E muita coisa mudou ao longo dos anos. Acabei ficando só na ala festiva, porque também senti muita dor. Reencontrei as amizades da época. Eles mudaram a sua postura em relação à mulher no judô. Aqueles que me dificultaram na época, hoje me tratam super bem. Me incentivam e me apresentam como sendo a primeira faixa preta.

Ano passado eu fui registrada na Federação Gaúcha, porque até então não constava nenhum registro. Quarenta anos depois. Hoje ajudo com o que eu posso contribuir, com dados, com a história do judô. Porque não tem registro dessa história aqui no Rio Grande do Sul. Mas todo o meio esportivo é difícil. Tem que persistir. Ainda mais difícil para as mulheres.”

Uma brasileira pulsante

Houve um claro avanço nas políticas públicas relacionadas ao esporte no Brasil, nos últimos quarenta anos. Além do fim do decreto nº 3.199 em 1979, uma série de leis favoreceu a prática esportiva. Durante o fim do período militar, em 1985, o Ministério da Educação, que tinha o então ministro Marco Maciel como seu titular, criou sob a presidência de Manoel Tubino a Comissão de Reformulação do Esporte Brasileiro. Desta comissão saíram oitenta indicações de reformulação, a partir da necessidade de revisão do próprio conceito de esporte no Brasil. A grande conseqüência desta comissão, foi a constitucionalização do esporte brasileiro pelo artigo 217 da Constituição Federal de 1988. No preâmbulo deste artigo, o Esporte no Brasil teve o seu conceito atualizado ao ser considerado como direito de cada um. Neste mesmo artigo, ficava determinada a autonomia das entidades e associações esportivas. Desse modo, estava rompida a tutela do Estado sobre a Sociedade em relação à área do Esporte.

O próprio quadro de medalhas brasileiro ao longo das Olimpíadas estampa essa evolução. Em 1976, o Brasil obteve apenas duas medalhas e se manteve em 35º colocado. Já em 2016, foram 19 medalhas e terminou a competição em 13º lugar — o melhor desempenho do país na história em ambas categorias. Além dos números, as narrativas pessoais de cada atleta demonstram as mudanças ocorridas. Rafaela Silva é mulher, negra e lésbica. Cresceu na favela carioca Cidade de Deus. É a primeira atleta da história do judô brasileiro, entre homens e mulheres, a ser campeã olímpica e mundial. Em agosto de 2013 Rafaela Lopes Silva tornou-se a primeira brasileira campeã mundial de judô. Três anos depois, em agosto de 2016, conquistou a medalha de ouro da categoria de até 57 quilos nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, após derrotar a judoca Sumiya Dorjsuren, da Mongólia, líder do ranking mundial na época.

Ainda assim, há um abismo entre a legalização das mulheres no esporte e a aceitação, a tolerância e o respeito com as minorias. Para além das questões de gênero, outros atravessamentos expõem as mazelas das relações sociais no Brasil. A história de Rafaela, infelizmente, não foi construída somente com vitórias. Nas Olimpíadas de Londres em 2012, após ser desclassificada, a judoca foi vítima de racismo. Em entrevistas, relata que foi um momento em que cogitou desistir do esporte, mas decidiu dar a volta por cima. Para a atleta, a medalha olímpica representou uma vitória sobre o racismo. Ainda assim, a possibilidade de mulheres como Rafaela alcançarem o pódio comprova a evolução do tratamento às atletas, comparado com a época de Léa Linhares. Alice Walker disse que “tempos difíceis exigem dançar furiosamente”. Os tempos atuais requerem mais. É preciso lutar furiosamente, como Rafaela.

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