POEMA FALADO #3 — Três poemas de Louise Glück: “Erva-bruxa”, “Gretel no escuro”, e “Paisagem”

Juliana
Clássicxs Sem Classe
8 min readOct 10, 2020

Nesse segmento, leio três poemas de Louise Glück — “Erva-bruxa”, “Gretel no escuro”, e “Paisagem” — em tradução minha.

Para ouvir: Spotify / Anchor / Youtube / PocketCasts / iTunes / Stitcher / Overcast

Para participar e enviar mensagens de voz: https://anchor.fm/julianabrina/message

Poemas lidos:

“Erva-bruxa

(tradução de Juliana Brina)

Alguma coisa
chega indesejada ao mundo
a clamar desordem, desordem -

Se você me odeia tanto
não se preocupe em me
nomear: será que você precisa
de mais um insulto
na sua língua, mais uma
maneira de culpar
uma tribo por tudo -

Eu não sou o inimigo.
Apenas um ardil para ignorar
o que você vê acontecer
bem aqui nesta cama,
um pequeno paradigma
do fracasso. Uma de suas preciosas flores
morre aqui quase todos os dias
e você não pode descansar até
que ataque a causa, ou seja,
o que quer que tenha restado, o que quer
que seja mais resistente
do que sua paixão pessoal -

Eu constituirei o campo.”

Original: “Witchgrass” (poema)
Fonte: The Wild Iris (1992)

Original: “Witchgrass

Something
comes into the world unwelcome
calling disorder, disorder -

If you hate me so much
don’t bother to give me
a name: do you need
one more slur
in your language, another
way to blame
one tribe for everything -

I’m not the enemy.
Only a ruse to ignore
what you see happening
right here in this bed,
a little paradigm
of failure. One of your precious flowers
dies here almost every day
and you can’t rest until
you attack the cause, meaning
whatever is left, whatever
happens to be sturdier
than your personal passion -

I will constitute the field.”

“Gretel no escuro

(tradução de Juliana Brina)

Original: “Gretel in Darkness” (poema)
Fonte: The House on Marshland (1975)

Original: “Gretel in Darkness “Paisagem

(tradução de Juliana Brina)

1.

Arrumo aqui minha cama para a noite,
cobrindo com minha colcha mais pesada a terra úmida.

O som do mar -
quando o cavalo volta a cabeça, posso ouvi-lo.

Em uma trilha entre as castanheiras sem folhas,
um cãozinho segue seu dono.

O cãozinho — ele não costumava se apressar,
puxando a coleira, como se para mostrar a seu dono
o que ele vê lá, lá no futuro -

o futuro, a trilha, chame como quiser.

Ouça: no final da trilha o homem está chamando.
Sua voz tornou-se muito estranha agora,
a voz de uma pessoa chamando o que ela não pode ver.

Crepúsculo: o estranho desamarrou seu cavalo.

O som do mar -
apenas memória agora.

2.

O tempo passou, transformando tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro se agitava.
Se você caísse nele, você morreria.

Era um tempo
de espera, de ação suspensa.

Era um tempo
regido por contradições, como em
Não senti nada e
Eu estava com medo.
O inverno esvaziou as árvores e as cobriu novamente de neve.
Porque eu nada conseguia sentir, a neve caiu, o lago congelou.
Porque eu estava com medo, não me movi;
minha respiração estava branca, uma descrição do silêncio.

Por toda a sua vida, você espera pelo momento propício.
Então, o momento propício
revela-se como uma ação realizada.

Eu observei o movimento passado, uma linha de nuvens se movendo
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
dependendo do vento. Alguns dias

não havia vento. As nuvens pareciam
permanecer onde estavam,
como uma pintura do mar, mais parada do que real.

O tempo passou; você conseguiu ver parte dele.
Os anos que ele levou consigo foram anos de inverno;
eles não deixariam saudades. Alguns dias

não havia nuvens, como se
as fontes do passado houvessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz o
atravessava diretamente. Então
a imagem se desbotou.

Acima do mundo
havia apenas azul, azul por toda parte.

3.

No final do outono, uma jovem ateou fogo a um campo
de trigo. O outono

fora muito seco; o campo
ardeu como um pavio.

Depois não sobrou nada.
Você caminha por ele e não vê nada.

Não há nada para pegar, cheirar.
Os cavalos não compreendem -

Onde está o campo, eles parecem dizer.
Da forma como você e eu diríamos
onde fica a casa.

É como perder um ano de sua vida.
Pelo que você perderia um ano de sua vida?

Depois, você volta ao lugar antigo -
tudo o que resta é carvão: escuridão e vazio.

Você pensa: como eu pude viver aqui?
Mas era diferente naquele tempo,
mesmo no verão passado. A terra se comportava

como se nada pudesse dar errado com ela.
Bastou um fósforo.
Mas na hora certa — tinha que ser a hora certa.

O campo estava ressecado, seco -
a morte já estava lá
por assim dizer.

4.

Havia um silêncio imenso.
Nenhum vento. Nenhum som humano.
O século amargo

chegara ao fim,
o glorioso partira, o duradouro partira,

o sol frio
persistia como uma espécie de curiosidade, uma lembrança,
o tempo a fluir atrás dele -

O céu parecia muito claro,
como é no inverno,
o solo seco, não cultivado,

a luz solene a se mover
com calma por uma fenda de ar

digna, complacente,
dissolvendo a esperança,
subordinando imagens do futuro aos sinais da morte do futuro -

Acho que devo ter caído.
Quando tentei me levantar, tive que me forçar,
por não estar acostumado à dor física -

Eu esqueci
quão duras são essas condições:

a terra não obsoleta
mas quieta, o rio gelado, raso -

De meu sono nada me
lembro. Quando gritei,
minha voz me acalmou inesperadamente.

No silêncio da consciência perguntei:
por que rejeitei minha vida? E respondi
Die Erde überwältigt mich:
a terra me derrota.
Tentei ser preciso nesta descrição
caso outra pessoa me siga. Posso atestar
que quando o sol se põe no inverno é
incomparavelmente bonito e a memória disso
dura muito tempo. Acho que isso significa

que não havia noite.
A noite estava na minha cabeça.

5.

Depois do pôr do sol
cavalgamos rapidamente, na esperança de encontrar
abrigo antes da escuridão.

Eu já podia ver as estrelas,
primeiro no céu ao leste:

Já me perdi antes, já senti frio.
A noite chegou para mim
exatamente assim, como uma premonição -

E eu pensei: se me pedirem
para voltar aqui, eu gostaria de voltar
como um ser humano, e que meu cavalo

permaneça ele mesmo. Do contrário,
eu não saberia como começar de novo.”

Original: “Landscape” (poema)
Fonte: Averno (2006)

Original:

“Landscape

1.

I make my bed for the night here,
spreading my heaviest quilt over the damp earth.

The sound of the sea -
when the horse turns its head, I can hear it.

On a path through the bare chestnut trees,
a little dog trails its master.

The little dog — didn’t he used to rush ahead,
straining the leash, as though to show his master
what he sees there, there in the future -

the future, the path, call it what you will.

Listen: at the path’s end the man is calling out.
His voice has become very strange now,
the voice of a person calling to what he can’t see.

Twilight: the stranger has untied his horse.

The sound of the sea -
just memory now.

2.

Time passed, turning everything to ice.
Under the ice, the future stirred.
If you fell into it, you died.

It was a time
of waiting, of suspended action.

It was a time
governed by contradictions, as in
I felt nothing and
I was afraid.

All your life, you wait for the propitious time.
Then the propitious time
reveals itself as action taken.

I watched the past move, a line of clouds moving
from left to right or right to left,
depending on the wind. Some days

there was no wind. The clouds seemed
to stay where they were,
like a painting of the sea, more still than real.

Time passed; you got to see a piece of it.
The years it took with it were years of winter;
they would not be missed. Some days

there were no clouds, as though
the sources of the past had vanished. The world

was bleached, like a negative; the light passed
directly through it. Then
the image faded.

Above the world
there was only blue, blue everywhere.

3.

In late autumn a young girl set fire to a field
of wheat. The autumn

had been very dry; the field
went up like tinder.

Afterward there was nothing left.
You walk through it, you see nothing.

There’s nothing to pick up, to smell.
The horses don’t understand it -

Where is the field, they seem to say.
The way you and I would say
where is home.

It is like losing a year of your life.
To what would you lose a year of your life?

Afterward, you go back to the old place -
all that remains is char: blackness and emptiness.

You think: how could I live here?

But it was different then,
even last summer. The earth behaved

as though nothing could go wrong with it.

One match was all it took.
But at the right time — it had to be the right time.

The field was parched, dry -
the deadness in place already
so to speak.

4.

There was immense silence.
No wind. No human sound.
The bitter century

was ended,
the glorious gone, the abiding gone,

the cold sun
persisting as a kind of curiosity, a memento,
time streaming behind it -

The sky seemed very clear,
as it is in winter,
the soil dry, uncultivated,

the official light calmly
moving through a slot of air

dignified, complacent,
dissolving hope,
subordinating images of the future to signs of the future’s passing -

I think I must have fallen.
When I tried to stand, I had to force myself,
being unused to physical pain -

I had forgotten
how harsh these conditions are:

the earth not obsolete
but still, the river cold, shallow -

Of my sleep, I remember
nothing. When I cried out,
my voice soothed me unexpectedly.

In the silence of consciousness I asked myself:
why did I reject my life? And I answer
Die Erde überwältigt mich:
the earth defeats me.

there was no night.
The night was in my head.

5.

After the sun set
we rode quickly, in the hope of finding
shelter before darkness.

I could see the stars already,
first in the eastern sky:

I have been lost before, I have been cold before.
The night has come to me
exactly this way, as a premonition -

And I thought: if I am asked
to return here, I would like to come back
as a human being, and my horse

to remain himself. Otherwise
I would not know how to begin again.”

Fontes do originais:

  • The Wild Iris (1992);
  • The House on Marshland (1975);
  • Averno (2006).

Música tema:

Caso tenha alguma sugestao ou queira participar de algum episódio do podcast (é tudo caseiro, nao se acanhe), é só entrar em contato comigo. Basta comentar aqui ou me enviar uma mensagem por meio de minhas redes sociais: Instagram / Twitter / Blog / Outros

Caso tenha interesse em comprar quaisquer dos livros citados nesse episódio, considere usar meu link de afiliado. Para cada livro que você compra usando este link, eu ganho uma pequena comissão — você não paga nada a mais por isso, e o frete é grátis em todo o mundo. Você também pode doar qualquer quantia de dinheiro para o podcast. Obrigada ❤

Até o próximo episódio,

J.

Originally published at http://semclassepodcast.wordpress.com on October 10, 2020.

--

--