As medidas socioeducativas e a maioridade penal

Cartas do Litoral
Palavras em Movimento
5 min readMay 6, 2015

4 perguntas para a Psicóloga Elizabeth Pereira Paiva

As discussões sobre o rebaixamento da idade relativa à maioridade penal, em geral, não têm privilegiado a análise do funcionamento do sistema socioeducativo e, em certo sentido, nem mesmo a fala daqueles que atuam diretamente na lida com os adolescentes: o que é o Sistema Socioeducativo? Quais são as condições de trabalho? O que se realiza ali? Para além de todos os argumentos e discursos já apresentados, criar oportunidades para que essas falas possam ser ouvidas, bem como aquelas dos próprios adolescentes (o que é estar no Sistema Socioeducativo? O que foi passar por ele?), é um caminho que poderá revelar matéria-prima de grandeza ímpar, a fim de que não nos percamos no cipoal de falsas questões.

É a partir da premissa acima que conversamos com Elizabeth Paiva, que é formada em Psicologia pela UFRJ, Mestre em Educação pela UFF, Especialista em Psicologia jurídica pela UERJ, Professora da Universidade Veiga de Almeida e Psicóloga aposentada do Departamento Geral de Ações Socioeducativas — Degase (RJ).

I. Fale um pouco sobre seu percurso e experiência profissional no campo do sistema socioeducativo.

Trabalhei no Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro durante 14 anos, dos quais 11 anos na semiliberdade na Baixada Fluminense, mais especificamente no CRIAAD de Nilópolis. Na Ilha do Governador, trabalhei inicialmente na área de saúde do trabalhador implantando um núcleo voltado para assistência em saúde mental dos servidores; posteriormente fui transferida para a antiga unidade de internação provisória denominada Instituto Padre Severino (atual Dom Bosco). Passei também pela escola de formação socioeducativa Paulo Freire implantando projetos de capacitação e treinamento em serviço e por último trabalhei no projeto de acolhimento aos familiares na unidade “Centro de Socioeducação Gelson de Carvalho Amaral”.

II. Qual é o perfil do adolescente atendido pelo Sistema Socioeducativo e o que esse Sistema efetivamente oferece a esse adolescente?

a) O perfil dos adolescentes atendidos no DEGASE é de jovens negros em sua maioria do sexo masculino, moradores de comunidades de baixa renda, com baixa escolaridade e histórico de abandono escolar. Quanto à inserção no mundo do trabalho (informal), as trajetórias desnudam a história do trabalho infantil no Brasil. A maioria informa que ingressou no mercado de trabalho precocemente por volta dos 8/9 anos como vendedores de balas, biscoitos, refrigerantes, guardadores de carros, entregadores de compras em feiras e supermercados, empacotadores do comércio em geral, auxiliares de pedreiros/ borracheiros/ de lava-jatos, empregadas domésticas, babás, trabalho doméstico (cuidados com a casa e com os irmãos para que as mães possam trabalhar). O trabalho é exercido concomitantemente aos estudos.

O referencial familiar dos adolescentes acompanhados pelas equipes do sistema socioeducativo do Rio de Janeiro é em grande parte pontuado por mães chefes de família, inseridas em atividades informais de trabalho (trabalho precarizado, entendido aqui como ocupação sem proteção social, com desenvolvimento de atividades múltiplas e jornadas extensas), vários filhos, precárias condições de moradia, alimentação e saúde. A figura paterna é, em muitos casos, ausente ou fragilizada por circunstâncias de alcoolismo/ desemprego.

O retrato familiar dos jovens atendidos no DEGASE reflete o quadro social brasileiro que, hoje, agravado pelas políticas econômicas de ajuste estrutural, tornou-se muito mais complexo ao perpetuar os antigos problemas — como a miséria estrutural — bem como incorporar novas situações de vulnerabilidade social, geradas principalmente pelos altos índices desemprego e pelo aumento da precariedade no mercado de trabalho.

As famílias não se mostram ausentes nem omissas. Revelam com tristeza que gostariam que seus filhos pudessem ter um destino diferente. A violência nos bairros, a naturalização do medo e as estratégias de convivência das comunidades com os “chefes do narcotráfico”, com os “grupos de extermínio” (os matadores dos bairros periféricos, as milícias na atualidade) são descritos com muita angústia pelos familiares dos jovens atendidos no DEGASE; eles convivem com muitas histórias de assassinatos de jovens.

b) O sistema socioeducativo do Rio de Janeiro tem procurado seguir as diretrizes do SINASE — Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, oferecendo aos jovens projetos que visem à garantia de direitos na área de saúde, educação, trabalho e cidadania, oferecendo cursos profissionalizantes, projeto de geração de emprego e renda, emissão de documentos de identificação, atenção à saúde física e mental com acesso ao sistema único de saúde e assistência social. No entanto, os problemas de superlotação das Unidades que são em número insuficiente no Estado, a descontinuidade dos projetos desenvolvidos em razão da falta de verbas, deficiência na qualificação dos profissionais, e o número insuficiente de profissionais para uma demanda sempre crescente, tornam difícil a execução dessas medidas.

III. É possível saber qual a proporção entre número de profissionais e número de adolescentes no Sistema Socioeducativo ou do valor investido pelo poder público nesse Sistema?

Eu não tenho esses dados. Posso apenas indicar que no DEGASE onde trabalhei serviam 2 psicólogos, 1 assistente social e 1 pedagogo para uma média de 40 jovens em regime de semiliberdade e 50 jovens em regime de liberdade assistida (época em que a municipalização não estava efetivada).

IV- O Sinase está efetivamente implantado? Seria possível realizar uma avaliação quanto à sua efetividade?

Embora eu não tenha condições de responder a essa questão de uma forma totalizante, considero que o Sinase está parcialmente implantado, tendo em vista que ainda não possui um sistema de garantia de direitos efetivamente funcionando, uma rede de políticas públicas efetivas, além de um processo de preconceito e estigma da sociedade frente às questões que envolvem os adolescentes em conflito com a lei.

V. O que falta fazer?

Investimento na implantação efetiva do Sinase. Além disso, cabe ao Poder Público implantar políticas de prevenção à violência primária, entendidas aqui como atenção à infância e à adolescência brasileira nos seus direitos fundamentais. Há uma enorme dívida da sociedade para com a infância e a juventude, como por exemplo educação e saúde universais de qualidade.

Segundo dados trazidos pela escritora Eliane Brum, em coluna publicada no jornal El País de 30–3–2015:

A cada ano, uma parte da juventude brasileira, menor e maior de idade, é massacrada. E a mesma maioria que brada pela redução da maioridade penal não se indigna. Sequer se importa. No Brasil, sete jovens de 15 a 29 anos são mortos a cada duas horas, 82 por dia, 30 mil por ano. Esses mortos têm cor: 77% são negros. Enquanto o assassinato de jovens brancos diminui, o dos jovens negros aumenta, como mostra o Mapa da Violência de 2014.

Qualquer política pública que se queira implantar, não pode ignorar essa realidade, essa desigualdade flagrante no país. Bastam esses dados para verificar que somos absolutamente contrários à proposta de redução da maioridade penal, já que se trata de medida inócua para a redução da violência, pois, como todas as medidas que reforçam a punição e o encarceramento da juventude, apenas continua encobrindo nossas mazelas na área da infância e juventude [JCC].

Leia também:

CARTA DE CONSTITUIÇÃO DE ESTRATÉGIAS EM DEFESA DA PROTEÇÃO INTEGRAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Argumento Contra Argumento: Redução da Maioridade Penal (Parte 1, Empório do Direito)

Siro Darlan: ‘O preconceito contra adolescentes infratores é que aumenta a violência’

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Redução da maioridade penal: “O crime só inclui quando o Estado exclui”. Entrevista especial com Ariel de Castro Alves

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