Iniciativas de memória e conflito armado: o enlace entre política e produção de subjetividade

4 perguntas para Sandra Arenas Grisales

Cartas do Litoral
Palavras em Movimento
7 min readMay 20, 2015

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Sandra Arenas Grisales é Mestre em Ciências Políticas, Doutora em Memória Social (UniRio) e Professora da Universidade de Antioquia, Colômbia.

Em 2014 a professora Sandra Arenas Grisales defendeu sua tese de Doutorado, “Os vaga-lumes da memória: altares espontâneos e narrativas de luto em Medellín — Colômbia”, que, em resumo, teve por objetivo:

“Analisar as ações e as práticas culturais pelas quais os sujeitos reconstroem suas memórias em contextos de violência. Queríamos identificar os usos políticos da memória, como resistência política nos espaços do dia-a-dia, do íntimo, familiar ou comunitário. Optamos pelas micro-histórias para compreender o sentido político do retorno ao cotidiano após enfrentar situações de violência. Apresentamos quatro experiências de criação de altares espontâneos na cidade de Medellín, na Colômbia. Os altares espontâneos são rituais de luto no espaço público, criados como resposta diante de mortes consideradas injustas”.

Grafite em homenagem a duas estudantes mortas durante um protesto, Universidade Nacional, Medellín. Foto: Diego Arango

Conversamos com Sandra Arenas sobre sua pesquisa e sua experiência de campo na abordagem de temas que aproximam memória e violência. As linhas estabelecidas permitem que notemos pontos de contato entre as dificuldades e os desafios que se expressam, tanto em Medellín como no Rio de Janeiro, em torno das relações entre memória, esquecimento, luto, violência, política e constituição subjetiva.

I. O que podemos entender da relação entre ‘iniciativas de memória e conflito armado’? Quais foram os principais achados de sua pesquisa?

Para responder sua pergunta, é bom lembrar que a Colômbia vive nas últimas seis décadas um conflito armado, o mais prolongado do continente. É uma guerra profundamente degradada, na qual o alvo, em lugar dos próprios combatentes, tem sido a população civil. Segundo dados do Centro Nacional de Memória Histórica, temos 220.000 mortos entre 1958 e 2012, além dos deslocados forçados, mais de 5 milhões de pessoas, desaparecidos e outras tantas formas de violações aos direitos humanos.

Apesar dos diálogos de paz na Havana, nossa guerra ainda persiste. Por isso a reconstrução da memória no meio do conflito armado apresenta-se igualmente conflitante. Neste contexto de violência têm surgido, nas últimas duas décadas, múltiplas iniciativas de memória de pessoas, famílias e de organizações de vítimas. São diversas: há pedras pintadas, mantas bordadas, calvários nas estradas, passeatas com velas para lembrar os mortos, percursos pelos lugares onde aconteceram fatos violentos, decoração dos túmulos dos mortos sem identidade para ajudar-lhes a ter um descanso eterno, só para enumerar algumas. Quase invisíveis para o olhar inadvertido, esses altares são os vestígios da violência vivida na Colômbia. Por isso consideramos importante reconhecer essas ações mediante as quais os sujeitos reconstroem suas memórias em contextos de violência.

Os casos que analisamos na pesquisa se apresentaram em Medellín, cidade conhecida no passado como uma das mais violentas do mundo e que viveu a guerra do narcotráfico contra o Estado, a conformação de milícias de esquerda e de células das guerrilhas agindo na cidade, assim como também a presença dos grupos paramilitares aliados com fortes organizações criminosas e narcotraficantes. Diversidade de grupos armados que tentaram cada um deles controlar os bairros e manter a população sobre seu domínio. Ainda assim os sujeitos encontraram formas de resistir e de expressar sua rejeição diante da violência que viviam. Assim um calvário onde estão guardados os restos do filho morto, um grafite para lembrar as colegas da universidade mortas durante um protesto, uma virgem com os nomes das vítimas de uma chacina e um mural com os nomes dos mortos num bairro são uma pequena evidencia das formas de fazer memória e de restituir a dignidade dos mortos no meio dos múltiplos conflitos armados que viveu a cidade nas últimas três décadas.

II. De que modo a relação acima expressa-se na Colômbia e qual sua importância?

A relação entre violência e memória é forte nas sociedades que viveram situações de guerra ou regimes autoritários ou fascistas. A pergunta sobre quanta memória e esquecimento são necessários para sair dessa situação é persistente e nunca bem resolvida.

A guerra e sua pletora de sentimentos, não permitia enxergar as múltiplas e diversas formas de fazer memória. Por isso as iniciativas de memória são tão importantes, elas nos obrigam a pensar o conflito armado numa perspectiva diferente, não só dos fatos violentos, das ações da guerra e dos guerreiros, mas também nas formas como os indivíduos logram reconstruir, preservar a vida, a possibilidade de um cotidiano que permita manter laços, vínculos e identidades. É nessa memória da sobrevivência que podemos esquadrinhar as ações políticas dos sujeitos que convivem com a violência. O silêncio para as vítimas foi uma imposição: suprimir o luto, proibir a denúncia ante as autoridades, silenciar os líderes das comunidades com ameaças ou com a morte, tudo isso foi uma prática generalizada. Ainda assim, as vítimas não se calaram, ao contrário, desenvolveram táticas para se expressar.

Nos últimos 15 anos há na Colômbia um processo de reconhecimento das vítimas, dos seus direitos. Essa mudança se deve especialmente à persistência da sua luta, ao valor demostrado para confrontar as verdades oficiais e criar eles mesmos sua memória dos fatos, ao seu agir constante para devolver a dignidade dos seus mortos e pedir justiça.

Mural com mais de 350 nomes de pessoas assassinadas no bairro Santo Domingo Savio, Medellín. Foto: Sandra Arenas

III. Haveria comparação possível entre Colômbia e Brasil no que tange à relação entre as iniciativas de memória e a relação delas com a violência urbana?

Não poderia falar do Brasil na sua totalidade, talvez só me atreveria a fazer uma comparação entre Rio e Medellín. Os governos dessas cidades têm estado em permanente contato há mais de uma década, uma e outra se olham e tentam reproduzir sua políticas de segurança, de combate ao narcotráfico e as gangues nas favelas. Também imitam suas políticas de criação de equipamentos públicos como bibliotecas e praças, assim como a aplicação de algumas políticas sociais. Porém, a violência cotidiana que suportam essas comunidades (não só aquela física ou de controle de grupos armados, senão também aquela derivada da pobreza e das condições de vida) parece invisível a nossos olhos. Embora seja grande o esforço de alguns grupos de pesquisa nas universidades, de ONGs, de organizações sociais nas próprias comunidades, a sociedade em seu conjunto não quer olhar para essa realidade. Rio é a cidade dos grandes eventos e Medellín é a cidade inovadora, porém por trás desses títulos há uma vulnerabilidade que deve ser reconhecida e compreendida como própria, de cada um de nós, para que alguma coisa possa ser feita e essas cidades sejam maravilhosas para todos seus habitantes, não só para alguns.

Altar em homenagem aos jovens assassinados numa chacina Bairro La MIlagrosa, Medellín. Foto: Diego Arango

IV. Para onde sua pesquisa aponta? Quais serão seus próximos passos? Algo mais a dizer?

Por enquanto quero continuar pesquisando na cidade de Medellín as pequenas iniciativas de memória que foram feitas no passado. Queremos fazer um mapa dessas iniciativas, especialmente aquelas que deixaram uma evidencia física na cidade, os artefatos construídos para lembrar.

Para terminar talvez eu agregaria que numa guerra como a vivida na Colômbia, mas também diria que numa ditadura como aquela vivida por Brasil, onde seus efeitos ainda são vivos, é necessário procurar as trajetórias de vida de indivíduos comuns, tornar visíveis os nomes e as histórias ocultas. Compreender que por trás de cada uma dessas histórias há uma dor que não é só individual, que diz muito sobre aquilo vivido por todos nós. A memória não deve ser buscada só naqueles eventos catastróficos ou caracterizados pelo excesso de violência ou crueldade. As pessoas que enfrentaram o horror não são apenas aquelas reconhecidas pelos governos como vítimas. Compreender a profundidade das implicações da guerra ou da ditadura, as múltiplas e variadas formas como ela transformou a vida de milhões de pessoas, enxergar as formas como pessoas próximas a nós foram marcadas por esses fatos, talvez nos leve a compreender a necessidade imperiosa do seu fim e a exigir que nunca mais aconteça de novo. [JCC]

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