O acolhimento institucional de crianças

Cartas do Litoral
Palavras em Movimento
4 min readApr 28, 2015

4 perguntas para a Psicóloga Roberta Gomes Nunes

Roberta Gomes Nunes é Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) e Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), além de Instrutora da Escola de Administração Judiciária (ESAJ/TJRJ).

Sua dissertação, Entre chaves e cortinas: a instituição acolhimento em análise, teve orientação da professora Anna PaulaUziel e foi realizada, como nos informa, “em uma instituição de acolhimento de crianças de zero a seis anos de idade, tendo por objetivo a análise das práticas de abrigamento. [Para tanto,] Três analisadores foram escolhidos: chave, cortina e dinheiro. Através de cada um deles foi possível lançar um olhar à instituição acolhimento no que tange ao trabalho exercido pelos profissionais, assim como às práticas de cuidado que vêm sendo adotadas na assistência à infância atual”.

Conversamos com Roberta Nunes sobre sua pesquisa:

  • I. Por que decidiu por esse tema e quais foram os principais achados do trabalho?

A escolha do tema tem a ver com a minha prática profissional como psicóloga de uma Vara da Infância e da Juventude na cidade do Rio de Janeiro. O fato de acompanhar alguns casos de crianças acolhidas bem como as instituições de acolhimento fez com que eu me aproximasse do tema e quisesse refletir mais profundamente sobre ele.

Foi possível perceber que as práticas de abrigamento estão diretamente relacionadas à visão que os funcionários, equipe, presidência e direção têm das crianças abrigadas, levando à reflexão a respeito de a qual infância essas crianças têm direito. Entendendo a infância não como um termo universal nem natural, e sim como um conceito variável de acordo com o momento histórico e contextual.

  • II. O que mais te surpreendeu ao longo da pesquisa?

O que mais me surpreendeu foi perceber que as crianças não eram vistas como crianças, que apenas estavam ali como se estivessem em um tempo em suspensão, no qual não havia espaço para ser criança. Havia uma intensa preocupação em conseguir dinheiro para o sustento da casa e das crianças, mas ao mesmo tempo as crianças não eram beneficiárias do dinheiro gerado, apesar de serem a fonte da geração da renda. O espaço era muito precário, as crianças não tinham acesso aos brinquedos, não eram ouvidas, seus familiares não eram atendidos, tinham horários limitados de visitação. Não havia uma trabalho com as famílias nem com as crianças.

  • III. Com base em tua experiência profissional, dentre os achados da pesquisa, quais poderiam ser generalizados, isto é, teriam um alcance para além do estabelecimento analisado?

As práticas de abrigar parecem ainda ligadas às práticas de tutelar, controlar, recolher as crianças e adolescentes pobres, apesar das mudanças dos Direitos Internacionais da Criança e do Adolescente.

O espaço que era para ser de acolhimento mostra-se como um espaço reprodutor de desigualdade, privação, julgamento e criminalização. As crianças não são vistas e acabam passando no abrigo um tempo em suspensão, sem investimento em seu desenvolvimento, crescimento e educação, os contatos com a família são limitados e a interação com os adultos não é estimulada.

As instituições de acolhimento que têm como foco as crianças e suas famílias realizam um trabalho com estas que visa à garantia de direitos, porém aquelas que não possuem este olhar reproduzem espaços de privação, tornando-se depósitos de crianças em privação no que diz respeito à infância e a suas famílias.

  • IV. O que mais poderia nos contar sobre a pesquisa realizada?

O lugar de especialista que fui convocada a assumir ao longo da pesquisa me exigiu trânsitos e a busca por estabelecer novas relações com o abrigo que não fosse a de predizer e ensinar a respeito de como deveria funcionar, tafefa na qual me vissem, por ser psicóloga da Justiça. Estar na entidade como pesquisadora me colocou novas questões antes impensadas, produzindo significativas mudanças na minha forma de pensar o abrigo e meu trabalho.

Junto à equipe e às cuidadoras, alguns caminhos foram traçados em direção à potencialização dessas vidas tão castigadas pelo controle e judicialização. Um trabalho em equipe começou a ser tecido, no qual trocas, discussões sobre os casos e atendimentos surgiram. Os pais passaram a circular pelo abrigo, vendo seus filhos, sendo abraçados por estes com sorrisos estampados em seus rostos. Afetos, trocas e saídas, neste caso do abrigo, começaram a surgir. Alguns brinquedos conseguiram escapar de trás das portas, abrindo-as e chegando às mãos das crianças, outros ainda persistem em manter as práticas instituídas do depósito e da vida em suspensão.

A existência de uma equipe integrada e ética é fundamental para que um trabalho voltado para as crianças e suas famílias aconteça. A busca ativa pela família visando o fortalecimento dos vínculos e a reintegração familiar, a escuta das crianças e o trabalho voltado para que o acolhimento seja o mais breve possível assim como o retorno da criança à convivência familiar.

No final da pesquisa dei-me conta da presença pulsante do meu primeiro objetivo ao buscar o mestrado, que era realizar um estudo sobre como as famílias das crianças e adolescentes eram vistas pelos profissionais que as acolhem, buscando entender como esta visão atravessava o trabalho que era feito junto a essas famílias. Foi possível perceber que antes de se pensar nas famílias é preciso olhar as crianças que não parecem estar sendo vistas como sujeitos de direitos. Nos locais em que não há crianças e não há infância, não é possível que um trabalho com as famílias aconteça. Antes é preciso pensar que são crianças, portanto, têm direito a uma infância e que o acolhimento não deveria ser um tempo em suspensão no qual existem o agravamento de perdas e a destituição do lugar de criança, mas sim um tempo de garantia de direito à infância, ao brincar, ao viver em comunidade, seja de outras crianças, de forma provisória, seja com a família — que se tem e com relação a qual os vínculos devem ser, em princípio, fomentados [JCC]

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