O desastre, a emergência, o jurídico
Capítulo do livro Possibilidades da Psicologia em Situações de Emergências e Desastres, Conselho Regional de Psicologia/2021
A noção de crise talvez seja um ponto comum entre o campo das emergências e desastres e o judicial. Os sujeitos que percorrem ambos os campos podem vivenciar, em alguma medida, o que se entenderia como “um estado temporal de transtorno e desorganização, caracterizado principalmente por uma incapacidade do indivíduo para manejar situações particulares utilizando métodos comumente conhecidos para a solução de problemas, e pelo potencial para obter um resultado radicalmente positivo ou negativo” (Slaikeu, 1996, citado por Paranhos & Werlang, 2015, p. 564). Alguns casos relativos a litígios nas áreas de família e violência contra a mulher talvez se reflitam nessa definição.
A associação entre direito, desastres e emergências aponta para horizonte relacionado ao campo da psicologia jurídica: o da responsabilidade e o do cuidado. Arenas Grisales e Coimbra (2016) indicaram, com base em Kai Erickson, que o reconhecimento do dano social é capital para a recuperação das feridas sociais. Isso porque as situações traumáticas que liquidam os vínculos sociais são as que têm origem quando agentes não reconhecem sua responsabilidade no dano produzido. Casos extremos vivenciados no Brasil ilustram isso à exaustão, Brumadinho, sendo, de variados modos, um exemplo. Dessa forma, para Erikson, a causa do dano não é tanto a natureza do acontecimento, mas o modo como se reage a ele e, importantíssimo, o não reconhecimento do sofrimento do outro. A falta de reconhecimento sublinhada não colabora para que o sujeito possa mobilizar recursos a fim de enfrentar ‘a invasão do Real’ que o assola. Nas palavras de Kehl (2014): “a invasão do Real sobre o psiquismo que não dispõe de recursos de linguagem para simbolizá-lo é chamada […]de trauma”. (p. 160).
A insuficiência do Direito, o não reconhecimento do sofrimento do outro, pavimenta a dimensão traumática como limite co- mum entre o campo dos desastres e emergências e o jurídico. No entanto, o trauma não é necessariamente uma constante no primeiro campo (Paranhos & Werlang, 2015) e nem no segundo. Todavia, ele acaba por ser variável que dita dimensões importantes de análise e intervenção tanto em um como no outro. O entrelaçamento entre o aspecto traumático dos desastres e emergências e o jurídico está assinalado por Fassin e Rechtman (2011): “Aqueles que nossa sociedade designa como vítimas nos falam mais de justiça do que de sofrimento, apelando ao direito antes que à compaixão” (p. III, tradução livre).
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