Negócios históricos são negócios de afeto

Clave de Fá
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6 min readMay 13, 2016

O quê o patrimônio comercial da sua cidade têm a dizer sobre sua memória?

Por Thamires Lima*

Certamente, andando pelo seu bairro ou visitando um local diferente, você já observou um comércio simples, mas que tinha toda a cara da região, com a presença de moradores e certo clima de intimidade entre os frequentadores.

Mercado Ver-o-Peso, Belém, Pará — Um dos exemplos de patrimônio comercial (Flickr)

Quando pequena, costumava ir numa mercearia na minha rua comprar doces. Moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, aquela ação cotidiana era como um ritual. Sempre que minha mãe me dava um trocado, eu ia lá com minha irmã comprar doces no Seu Valdemar. Fiz isso durante toda a minha infância. Quando o negócio fechou — por conta do falecimento do proprietário — foi como se a história da minha rua estivesse entrado em outra etapa: a da minha memória afetiva com meu bairro. Passados 15 anos, o local onde era seu comércio está lá, fechado, sem dar àquela esquina da rua toda a vitalidade e a alegria de um cotidiano comum que os comércios locais costumam oferecer aos bairros.

Esse relato pessoal, bastante afetuoso, faz pensar sobre os usos e os destinos do espaço e como eles refletem as nossas histórias e memórias, em uma espécie de biografia particular e, por quê não, histórica e comercial) do espaço, nesse caso, do bairro onde nasci e vivo.

“Para fazer a ligação entre localidade como propriedade da vida social e os bairros como formas sociais, temos que compreender o contexto. A produção dos bairros tem sempre base histórica e contextual” Appadurai [1]

Os bairros são percebidos na coletividade como reflexo dos sujeitos locais e dos grupos sociais que os habitam. Sujeitos locais que representam a história do comércio existente, do bairro, da região. Appadurai discutia como o bairro exprime bem o que seria a localidade, na medida em que o bairro representa uma forma social substantiva. Locais como padarias, restaurantes, tendinhas, bares e “biroscas”, refletem muito mais do que a história do negócio ou do empreendedor. Mais além, elas apontam para a história do local, do bairro ou da região.

Alguns pesquisadores e instituições dão diferentes nomenclaturas para esse fenômeno. Denominam de negócios históricos, pequenos negócios familiares, negócios tradicionais [2] e patrimônio comercial [3].

São negócios que preservam saberes e técnicas em seu processo produtivo, sendo este feito numa escala menor de forma artesanal ou manual. Há também a questão histórica, que envolve a tradição do empreendimento, seja a partir dos longos anos de existência naquela região ou pelo fato de serem geracionais, ou seja, serem transmitidos através da geração familiar. Negócios como esses também tem uma relação muito estreita com a localidade, na medida em que são identificados facilmente pelos moradores e frequentadores da região, especialmente aqueles mais antigos que são clientes fiéis. São também marcas que são consideradas tradicionais, que atravessam gerações de consumidores e são facilmente identificadas nos contextos locais.

Atividades locais comerciais podem se tornar referência. No bairro onde moro, pouca gente sabe o nome da rua que todos chamam como “a rua da feira”. Já numa outra rua, a referência é aquela “barbearia mais antiga”.

O comércio teve um papel fundamental na construção do cenário urbano da cidade do Rio de Janeiro. Por exemplo, a história da região central da Cidade (e dos bairros que a compõem) é a história do seu desenvolvimento econômico e comercial e também da vida das pessoas que nela vieram a construir suas trajetórias. Tais atividades refletem a trajetória de uma região e sua memória.

Iniciativas institucionais vêm surgindo para dar destaque e valorização de negócios desse tipo. Como estratégia para fortalecer as atividades econômicas tradicionais existentes em determinadas regiões — frente a transformações urbanas e no perfil sócio-econômico dos territórios — , projetos de reconhecimento de comércios desse tipo vêm para se constituir como uma das bases possíveis para o fortalecimento de atividades que têm caráter histórico e de memória na cidade.

Tais iniciativas são importantes, a medida em que colaboram para a superação de desafios econômicos e produtivos em cidades que possuem um alto custo de vida como o Rio de Janeiro. Este é um movimento que já é tendência em outros países da Europa, e que vem sendo mobilizado com força no Brasil por instituições. Uma de suas frentes pode ser através da sua titulação como “negócios tradicionais” [2] ou através da designação de “patrimônio comercial”.

Um dos fatores que exerce mais influência sobre o patrimônio comercial está o turismo, que impacta nas economias locais de forma positiva, considerando os elementos patrimoniais micros como símbolos da identidade local de “cidades históricas”[4]. Consequentemente, o comércio passa a ser um dos elementos mais valorizados do patrimônio cultural das cidades, devido a influência do turismo. É comum observamos nos itinerários turísticos a indicação de rotas gastronomias e de compras, de onde os “monumentos” são as atividades comerciais e o consumo nesses locais.

A permanência de “negócios tradicionais”, “negócios de afeto”, “patrimônio comercial” no Rio de Janeiro é um grande indício da capacidade dinâmica e criativa desses empreendimentos. Sem dúvida, são negócios que não devem ser esquecidos pelo que foram, mas sim valorizados através de sua existência e importância no presente como reflexos da localidade, da cultura local.

Durante um trabalho de campo no Centro do Rio, no Saara, encontrei esse comércio histórico de 1924. O negócio já se encontra em sua 3º geração. O cartaz foi elaborado pelo filho do fundador da loja em comemoração aos 91 anos da loja. (Arquivo: Clave de Fá Pesquisas e Projetos)

Simplicidade, afeto, tradição e história resumem essa foto.

Por representarem hábitos de consumo e serem referência de um determinado local, estes comércios são importantes para as pessoas, para o bairro, para a região e para a cidade. Isto ocorre, sem dúvida, pelo fato da sua singularidade no território e da sua relação histórica e social com a área, o que atrai a circulação de pessoas e os consumos turístico, cultural e econômico .

Por isso, é preciso reconhecer o valor social e cultural desses empreendimentos, das relações sociais e identitárias por eles desencadeadas na construção da paisagem urbana, que compõem parte do patrimônio cultural material e imaterial da Cidade. A singularidade de um comércio, de um bairro, do cotidiano dos moradores é uma das coisas mais interessantes para a cultura da cidade, sem dúvida o reflexo de um modo particular de viver, fazer história e produzir a localidade.

* Thamires Lima é analista de pesquisa da Clave de Fá Pesquisas e Projetos. Cientista social de formação pelo IFCS -UFRJ e mestranda em Antropologia Urbana pelo PPCIS-UERJ, já atuou em projetos relacionados a territorialidades, políticas públicas de investimento social, usos e apropriações do espaço urbano.

NOTAS

[1] Dimensões Culturais da Globalização — Arjun Appadurai. Editora Teorema

[2] Durante o ano de 2015, a Clave de Fá participou do Projeto Negócios de Valor, do Sebrae-RJ, na área de pesquisa. Coordenamos um mapeamento social de negócios tradicionais na região das APAC´s (Áreas de Proteção do Ambiente Cultural) do Rio de Janeiro.

[3] A categoria de patrimônio comercial foi desenvolvida dentro de um contexto histórico de ampliação a nível cronológico e temático dos critérios de classificação do que é “patrimônio cultural”.

[4] O conceito de “cidade histórica” favoreceu a ideia de patrimônio comercial. A cidade é o espaço primordial para o desenvolvimento do comércio. Há entre cidade e comércio uma relação histórica. Uma “cidade histórica” reconhece o valor de certas cidades na história e no desenvolvimento de seus países, ao mesmo tempo em que valoriza a tradição do local, ajudando a manter o comercio tradicional como um traço do tecido urbano.

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