Por que eu faço você sofrer

Cléber Zavadniak
clebertech
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13 min readMar 9, 2017
Bela imagem. Completamente não-relacionada.

Quem é ou já foi um “liderado” meu já deparou-se com alguma insistência minha em que algo fosse feito imediatamente, mesmo sendo algo chato, demorado ou aparentemente sem propósito prático imediato. Muitas vezes essa tarefa poderia não ser feita e um “okay, da próxima vez faça direito” poderia ser dito e tudo ficaria bem e todos seríamos mais felizes pois a lição foi aprendida e poderíamos prosseguir nos nossos trabalhos mas, não, não vamos prosseguir trabalhando porque o Cléber insiste que eu desfaça algo que fiz “meio errado” e faça corretamente, mesmo que eu perca o resto do dia fazendo isso.

Humpf!

Okay, eu sei que é geralmente desagradável e até estranho. Afinal, geralmente “a chefia” cobra resultados rápidos e lá vem o Cléber fazendo-me perder um bom tempo com algo que poderia simplesmente ser deixado pra lá. Será que ele faz isso por maldade?

Bom, neste artigo quero esclarecer meus motivos, especialmente para que quem tem que aturar gente como eu ou quem tem que aturar ser gente como eu faça bom proveito desses conceitos que apresentarei.

O crescimento vem pela dor

Não é curioso que você nunca tenha ouvido alguém dizer “nessas férias fiquei em casa direto, comendo churrasco todo final de semana e sem fazer nada o dia todo. Puxa, eu cresci muito como pessoa nesse período!”? Junte todos os relatos que terminam com “eu cresci muito como pessoa” e você verá que todos eles falam sobre dor, sofrimento, desafios e confrontação. Não é o sossego e tranquilidade que te fazem crescer, entende?

Robert Salmon, “Ship in Storm”

Pense num marinheiro que tenha passado trinta anos trabalhando no mar e nunca teve que enfrentar uma tempestade. De que lhe adiantou tudo isso? Quando enfrentar a primeira, estará quase tão perdido quanto um homem da terra. Melhor lhe fora, em questão de experiência, ter passado três anos enfrentando um mar turbulento frequentemente!

Tranquilidades

“É, não tenho visto muita agitação…”

Eu sou o tipo de cara que muda de emprego de quando em quando (como quase todos da minha geração, até onde eu sei). Vivi vários tipos de “experiências trabalhistas”, desde ser o aprendiz até ser um “top performer” e de volta a aprendiz e de volta a “top performer” e por aí vai. Tive chefes com mentalidade moderna e razoável, chefes modernos com mentalidade antiquada e chefes simplesmente antiquados. Trabalhei em empresas enormes, empresas médias e empresas pequeninas. Trabalhei em lugares em que os funcionários são amigos da empresa e em lugares em que funcionários e empresa são inimigos entre si.

É legal ser um “top performer”? É, é bem legal. Dá uma sensação de “já-realização” e de sossego. E abre portas para ajudar as pessoas, o que é mais legal ainda.

Em certa empresa onde trabalhei, já entrei meio que “manjando das paradas” e, depois de pouco tempo, já tinha estabelecido uma esfera de influência considerável, conseguindo fazer ou ajudar a fazer vários avanços bacanas em áreas diversas da empresa.

(Eu admito que, tecnicamente, eu nem era um profissional assim tão qualificado. Mas a média lá era muito baixa, então não era difícil se sobressair.)

Lá eu aprendi um pouco sobre o nicho no qual a empresa trabalhava, melhorei um pouco minhas habilidades como desenvolvedor e ganhei um pouco mais experiência liderando uma equipe.

Legal, não?

Mas viu como tudo foi “um pouco”? Eu posso contar no dedo os momentos em que eu posso dizer “aquela situação me fez crescer pra valer”. Uma delas foi um momento de, veja só, enfrentamento entre eu e um cacique-de-área, que achou um problema (válido) numa ideia minha e com o qual, depois de esfriar a cabeça e analisar a coisa toda com calma, acabei concordando e achando uma solução melhor.

(Teve mais um pouco de enfrentamento e dificuldade, mas foi com um chefe ignorante e não gerou muita edificação em ninguém…)

Em ainda outra empresa havia um pacto de não-produtividade. Basicamente, era uma empresa enorme que terceirizava nosso serviço para outra empresa ainda maior.

Como você já deve saber, na maioria das empresas grandes (digo, aquelas com milhares de empregados) os funcionários são considerados inimigos da empresa e a empresa é considerada inimiga dos funcionários. Um concorre contra o outro, basicamente. Então pense no caso dessa terceirização, em que fazíamos o trabalho para outra empresa ainda maior!

Esse pacto não-escrito dizia, basicamente, que ninguém ali excederia determinado nível de produtividade. Porque, se na semana X produzíssemos muito mais, por algum tipo de boa sorte ou boa vontade extra e sem muito motivo, seríamos todos cobrados a produzir isso ou mais na semana X+1 e o “normal” passaria a ser considerado “pouco”.

(Rolava tanta coisa maluca nessa empresa que um dia escreverei uma série de artigos só sobre ela…)

Crescimento pessoal? Zero. Zero mesmo. Tivesse ficado eu em casa aquele ano ao invés de ir trabalhar e teria aprendido mais, pelo menos.

Dificuldades

“Mar agitado? Eu vou te contar o que é um mar agitado…”

Quando entrei numa empresa que fazia sites e sistemas em PHP, eu mal sabia programar em tal linguagem. Eu havia apenas feito uma coisinha ou outra por conta própria com ela, mas nada sério. Eu realmente não a dominava. Tampouco trabalhar de verdade com bancos de dados. Eu já entrei lá “com desvantagem”, então, no primeiro mês já pode-se dizer que a primeira melhoria em mim já havia acontecido: eu dominava PHP (pelo menos muito mais do que antes de entrar lá).

Nessa empresa o chefe era designer e entendia bem de design de interação e interfaces para usuários em geral. E eu era meramente um programador iniciante.

Pois acontece que alguns clientes pediam coisas do arco da velha, lá, e criar um sistema que (1) funcionasse e (2) fosse fácil de usar podia ser um desafio e tanto. Várias vezes o problema caía na minha mão e eu simplesmente o resolvia, com minha mentalidade de programador. Aí chegava no chefe, que olhava e me dizia, sem rodeios, que a solução era ruim. Às vezes eu ficava indignado, mas geralmente ele indicava um caminho melhor e, no fim das contas, realmente a nova solução era muito melhor, mesmo que desse um pouquinho mais de trabalho na “parte técnica”.

Eu não conseguia ver, na época, que essa “chatice” estava me moldando, fazendo de mim um profissional melhor.

Não, não era divertido ter que jogar fora 90% do código e começar quase que do zero. Mas, mesmo sem entender bem o processo de crescimento ao qual eu estava exposto, ser obrigado a fazer melhor do que eu havia feito antes — ou, em outras palavras, fazer do jeito certo, me fez, aos poucos, ser melhor do que eu era.

Houve outra empresa em que entrei já como “desenvolvedor sênior”. Mas o nível profissional era tamanho por lá que eu me sentia sempre tendo que “correr atrás”, me empenhando para ser melhor a cada dia. Foi durante esse período que ocorreu o que eu chamo de “refinamento”: eu já era um profissional cheio de habilidades, experiências e ferramentas, mas faltava-me, digamos, “classe e compostura”. Eu sabia fazer as coisas, mas era grosseiro, desajeitado e auto-indulgente. Faltava fineza, elegância, e sei que ganhei muito disso com essa experiência de ser o “sênior-sempre-aprendiz”.

Eu como líder

Eu quero crescer, e até acho que aquela história de “carreira em Y” é legal, mas eu sei bem que, na vida real, você só aumenta teu salário e melhora seus benefícios indo para cargos de gerência. Meu objetivo, hoje, é ser CTO. Simples assim. Não tenho medo de admitir isso.

E como crescer? Como “escalar” a pirâmide? Há várias formas, mas eu sempre prefiro que seja fazendo a equipe que lidero crescer. Não em número (a não ser que isso seja interessante, claro), mas que cada indivíduo nela tenha espaço para desenvolver ao máximo seus talentos e que tenha oportunidade de aprender mais e crescer como pessoa e como profissional.

A hierarquia numa empresa, na verdade, deve ser vista como uma pirâmide invertida, em que os que lideram vão “afundando” nela. Um líder, numa definição bem simples, é alguém que garante que as coisas estão nos eixos e que o trabalho avança. Ele é o que serve a todos. Esse é o objetivo. E quanto mais o trabalho avançar, podemos dizer que melhor é o líder. E qual a melhor maneira de avançar com o trabalho senão ajudando cada membro do time a tornar-se um profissional melhor?

E há algo bacana nisso tudo que é a satisfação pessoal. Bem egoísta isso de ser altruísta, não? É gratificante ver o aprendiz se tornando “pleno”, não por simplesmente somar os anos de trabalho, mas por ser agora um profissional “bem lapidado”, competente, inteligente, motivado, focado e com energia. É gratificante ver o pleno tornando-se “sênior”, não pelo tempo de serviço, mas por estar-se refinando cada vez mais, tornando-se ainda mais completo. Isso tudo traz uma sensação muito boa para o líder.

Eu sou um velho cético que acredito que, olhando a vida em retrospecto, é algo muito mais feliz saber que ajudei pessoas a crescer, que tem gente que lembra de mim e pensa “com ele eu aprendi muito e cresci como pessoa e como profissional” do que “a empresa na qual eu fiquei apenas X anos cresceu muito e agora é gigante”. Que “legal”: a empresa era boa, e agora provavelmente ficou ruim. E não me importa porque já não trabalho lá. Empresas importam menos do que pessoas, porque as empresas, sob certo ponto de vista, não existem. Uma empresa não ama, odeia, valoriza ou despreza ninguém. São as pessoas que fazem isso tudo e são elas que vão lembrar de você.

Inércia

Quando eu insisto que algo que foi feito de maneira errada seja corrigido imediatamente, mesmo que o efeito final seja o mesmo, não é à toa.

Eu sei que você entendeu qual foi o problema e eu sei que você agora sabe o jeito certo de fazer da próxima vez. Mas a grande questão é que somos humanos, o elemento com a maior inércia do universo. Você pode querer “acertar na próxima”, mas não adianta ficarmos no reino da vontade quando o problema encontra-se fora do alcance desta mesma vontade. Se a correção não lhe custar nada, haverá uma força imensurável dizendo, basicamente, que “não dá nada” e, instintivamente, você nunca mudará e, na próxima vez, cometerá exatamente o mesmo erro e ainda se perguntará “credo!, como fui repetir essa mesma besteira?”. O que torna óbvio o primeiro motivo da minha insistência: na execução de três tarefas parecidas, por que eu trocaria um erro e três acertos por dois erros e dois acertos? É uma matemática muito simples! Se você não se obrigar a fazer do jeito certo agora, só adiará o inevitável: você repetirá o erro na próxima vez.

O “depois” é do capitoro

O segundo motivo é que obrigar-se a fazer do jeito certo faz você melhorar e crescer agora, não depois. “Agora” é garantido, “depois” não é! Agora eu sei que você pode tirar um tempo para fazer a coisa certa, depois eu não sei. Então faça agora!

Ademais, certas outras “teimosias” minhas, especialmente com relação a processos e metodologias, são fruto de conhecer vários projetos que foram tocados sem processos e metodologias acertados e cujo resultado é um desastre, como a empresa que tinha um “analista de suporte” para cada desenvolvedor. Ou mais! E mais da metade do tempo dos desenvolvedores era gasta com correção de bugs.

Ora, não é a ideia que as pessoas “gastem” seu tempo, mas que o “invistam”. Manter um processo bem organizado nos ajuda a garantir que não precisaremos dispender uma fração tão absurda do nosso tempo corrigindo erros, mas sim desenvolvendo coisas novas e melhores. Não é a equipe de suporte ou a de “sustentação” que eu quero que cresça! A cada uma hora que você gasta fazendo as coisas do jeito certo agora você salva dezenas de horas de conserto a posteriori.

Onde passa boi…

Além disso, precisamos ser rigorosos inclusive com coisas que parecem pequenas, pois “onde passa boi, passa boiada”. Os grandes erros muitas vezes são construídos por pequenos errinhos no meio do caminho que nunca foram devidamente tratados. Acostume-se a pensar em extrapolação: se hoje a equipe tem 4 pessoas, amanhã terá 40. Se hoje temos 5.000 linhas de código, amanhã teremos 500.000. E com tudo escalando rápido, pode ter certeza de que os problemas escalarão com o dobro da velocidade. Um probleminha de comunicação hoje será um problemão, amanhã. Uma maniazinha meio ruim que você tem hoje será um problema generalizado, amanhã. Um “deixa pra lá” hoje tornar-se-á uma falha tão enraizada na cultura da equipe que, no fim, possivelmente, desistiremos de tentar remediá-la.

Trate os outros como quer ser tratado

É fácil ser legalzão e dizer que tudo está bem e evitar um embate, ou cobrança ou cara feia. E esse é o problema: como eu disse, não é na facilidade que se cresce. E mais: quando as pessoas discutem entre si, insistindo em algum ponto de vista, pode até parecer negativo, mas geralmente é um sinal muito bom: de que nos importamos. Não se gasta energia nos assuntos que desprezamos. Se fôssemos um departamento ao estilo “o que importa é o salário no fim do mês”, ninguém estaria esquentando a cabeça com nada. Mas não é assim que deve ser, certo?

Passamos geralmente mais horas com “a galera do serviço” do que com nossas famílias. Trabalho é uma parte significativa de nossas vidas e não seria legal que tanto tempo assim fosse gasto com algo com que não nos importamos.

Nem tudo é dificuldade

Curiosamente, o que me leva a confrontar e insistir em certas coisas é causado pelo mesmo sentimento que também me leva a ouvir as pessoas sem pré-julgamentos. Boas ideias podem vir de todos, assim como bom feedback. Não importa se você sente-se como “peixe fora d'água”: as pessoas que menos sabem sobre um assunto às vezes são a melhor forma de se validar uma ideia ou plano, pois pelo menos não estão saturadas com as ideias vigentes. E se você sente-se confortável com a área, também merece ser ouvido. Afinal, espera-se que a empresa busque contratar pessoas talentosas e inteligentes, não? Não seria uma atitude extremamente besta deixarmos de ouvi-las?

Parte do papel do líder é conseguir que as pessoas desenvolvam seus talentos. E nesse mundo “cada um é cada qual”: uns precisam de silêncio, outros de barulho. Uns são tímidos, outros são expansivos. Uns são assim, outros são “assado”. E o empenho que tenho em garantir que sigamos bons processos é o mesmo empenho que tenho em buscar essa possibilidade de desenvolvimento de cada um. É difícil dissociar uma coisa da outra, porque o não-confronto é resultado de não se importar. E como buscar o crescimento dos indivíduos sem se importar com eles?

Muita facilidade? Desconfie!

Liderar, por mais “glamour” que a palavra traga, não é nada mais que servir os outros. E servir não é fácil ou agradável. Confrontar as pessoas, insistir que elas invistam tempo fazendo as coisas do jeito certo mesmo que não vejam a vantagem disso, também não. E muitos líderes escolhem o caminho fácil, o caminho do “tudo bem, não tem problema” simplesmente porque lhes é mais cômodo. E isso não é bom e prejudica a todos os envolvidos — embora todos vivam na maior tranquilidade.

Yet another one…

Você já deve ter visto dezenas de ilustrações do tipo “chefe versus líder”. Geralmente o “chefe” é mostrado como alguém que não está fazendo nenhum esforço e quer que a equipe o carregue. Mas o “chefe” nem sempre é “mandão”. Muitas vezes ele é do tipo passivo que nunca cobra nada de ninguém, para o qual tudo está sempre bom e que de quando em quando precisa implorar por resultados para uma equipe que passa a vida largada à sua própria sorte. Ele não ajuda em nada, mas quer resultados. O outro extremo, claro, é o chefe que pratica “micro-management”, que não ouve as ideias da equipe e, de quando em quando, exige resultados de uma equipe cujos indivíduos nunca conseguiram desenvolver seus talentos e que não implementa boas inovações, pois novas ideias são ignoradas. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: fracasso.

Você quer fazer parte de uma equipe especializada em fracasso? Imagino que não.

Confronto, não carteirada

Eu uso a palavra “confronto” porque é um embate de vontades: você não quer perder tempo fazendo algo, mas eu insisto que você o faça. Todavia, embora algumas vezes eu precise apelar ao “faz porque eu estou mandando”, é muito mais na esperança de que você possa aprender agora, vença a inércia natural e já perceba que o resultado é bom do que uma necessidade de “uso da autoridade”. Sério, eu não tenho esse fetiche, aí.

Há o jeito certo de se fazer as coisas e, especialmente, há o jeito certo de se tratar com as pessoas. Dar carteiradas, tipo “eu que mando aqui” é o jeito errado de se tratar com as pessoas. Funciona bem no exército, mas, nas empresas pelas quais passei, com certeza não é bom.

Ademais, você sempre pode sugerir uma solução diferente. Como eu disse, a empresa busca contratar gente talentosa e inteligente e é provável que você seja mais inteligente do que eu. Seria muita burrice, da minha parte, não ouvir a sua ideia.

Em resumo

Eu faço você sofrer porque eu gosto. Gosto de ver as pessoas crescendo, gosto de boas práticas e bons processos, gosto de corrigir os erros antes que estes tornem-se um problema maior, gosto de trabalhar em equipes especializadas em sucesso e gosto de resultados excelentes. E para isso eu preciso sofrer junto contigo — posso garantir que não me divirto confrontando as pessoas. Mas é o que tem que ser feito e, assim como eu mesmo não fujo do “não-divertido”, espero que você também não o faça. Porque, embora o processo possa incluir algumas dificuldades, o resultado é bom e muito gratificante.

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