Empatia esvaziou a nossa capacidade de compreender a Alteridade

A má interpretação e inadequação de conceitos, ou o uso enquanto “modismos”, é algo que particularmente vejo com certa frequência no mercado de trabalho. Não se dá o devido valor às complexidades, não se trazem referências às origens e nem aos clássicos, e reduzem a significados comuns e, ao meu ver, às vezes bastante simplórias com o foco apenas no que aquilo terá de retorno imediato para lucro e quais os impactos na percepção da marca que isso gera.

Renata Brasileiro
ClickBus Design
Published in
6 min readAug 2, 2021

--

Por isso, aqui vai uma boa prática, precisamos refletir sobre conceitos, pois, sim, os conceitos importam!

Mas antes de mais nada preciso escurecer meu local de fala como interlocutora deste texto. Sou uma mulher negra nordestina que tenho formação no bacharelado em Antropologia e Diversidade Cultural Latino Americana pela UNILA e atuo como UX Research na querida ClickBus.

E como mote deste texto trago a pergunta: Será que o mercado de trabalho atual está preparado para refletir com profundidade sobre as reais definições de conceitos como Empatia?

A resposta acima vai render muitas linhas de conversa durante esse texto. Por isso, sem pressa, seguimos o mergulho ao imergir sobre conceitos.

Vejo como estranho e muito me incomoda com a afirmação tão corriqueiramente utilizada que: “empatia é calçar os sapatos dos outros e assim sentir suas dores” . Peço que quando essa analogia seja feita venha acompanhada pela reflexão: Eu, Renata, calço 34. Se alguém que calça 39 tentar calçar o meu sapato, ela não vai conseguir, e as dores que sinto, segundo ela, serão outras.

Então cabe colocar em letras garrafais que é impossível sentir exatamente a dor do outro e esse texto é sobre isso e não tá tudo bem quando as marcas ou empresas usam de apelações emocionais em propagandas para vender uma imagem que se associa a respeito, diferença e colaboração entre pessoas.

No campo do design existem ferramentas que se baseiam e constroem entregas cotidianas do ofício, por exemplo podemos trazer Personas ou Mapa de Empatia. Aqui nesse texto compreendemos que essas ferramentas jamais estão carregadas de verdades absolutas, inclusive há muito pano para manga no que tange essa conversa. Poderíamos nos questionar: Seria Persona como um conceito limitante?! Seria o usuário uma redução do ser humano? Sem dúvidas compreendemos a importância e limites dessas ferramentas para o negócio e com o mundo ágil e acelerado que vivemos essas são ferramentas facilitadoras, mas volto a dizer, nosso objetivo neste texto não está centrado neste ponto.

Por isso não acredito ser justo entender a empatia como corriqueiramente se aplica em se colocar no local do outro, e sim como um exercício onde eu posso tentar me aproximar ao lugar desse outro através daquilo que aquele outro está passando, na tentativa, sendo mais subjetivo e psicológico.

Proponho apresentar um conceito que para muitos será até um desconforto em suas zonas ditas como de conforto, mas na antropologia é onde muito usamos e nos apoiamos enquanto metodologia: Alteridade, esta que é reconhecer o outro, como um ser de deveres e direito, um desdobramento de mim mesmo, é aquilo que eu vejo no outro e reconheço nesse outro como um sujeito de direitos e quando eu vejo ele não o vejo como inferior ou superior, apenas como outro carregado de direitos.

Em poucas palavras, Alteridade é o reconhecimento que não somos únicos e que nesse exercício de entendimento das diferenças precisamos nos inserir pois também somos construídos nessa relação.

A relação com o outro é ponto crucial de nossa vida desde o nascimento. Vivemos em dependência um do outro e as relações não costumam ser uma escolha ou opção, e sim uma questão de necessidade em nossa espécie.

Mas como viver o outro e eu, em sociedade respeitando as diferenças? Por isso essa relação sempre é uma relação de complementaridade que nem sempre é sinônimo de uma relação harmônica. É a relação com o outro que também ajuda na formação de nós, indivíduos.

A empatia e a alteridade são processos importantes, tanto eu reconhecer a alteridade, ou seja, reconhecer esse outro que está ali e que pode ocupar uma função diferente da minha, quanto em momentos específicos estar empática, tendo a abertura para se aproximar com a dor do outro, com a situação de vida que esse outro está passando.

Agora mesmo com o Covid-19 a empatia foi muito aplicada nesse momento, com a dor, com o excesso de trabalho. Porém mesmo que esses conceitos pareçam sinônimos, eles não são, até porque suas raízes são distantes.

Na Antropologia são princípios como “tornar o exótico em familiar, e o familiar em exótico” ou “para descobrir é preciso se aproximar” que autores como Roberto da Matta, Gilberto Velho, nos ensina desde logo, a importância desse exercício para nossa formação. Essa transformação de olhar, ao tornar o exótico em familiar, consiste em construir conhecimento com foco no que em nossa realidade está longe, apartado. E no que tange o transformar o que é familiar em exótico representa esse “estranhamento” perante algo corriqueiro e presente em nossa realidade a fim de torná-lo em desconhecido/distante para gerar conhecimento.

Mas será que se aproximar já é suficiente para entender a dor do outro?

Aqui gostaria de emoldurar em cada escritório que se importa e tanto usa o conceito de empatia a frase que diz: “Precisamos respeitar os locais de fala, tá ok, Mami?” pois como será possível gerar empatia sem haver diálogo, comunicação, entendimento e respeito pela dor do outro? Sem dar direito para que esse próprio outro fale sobre suas dores? Aí é outro ponto sobre Empatia e Alteridade, Empatia dá direito ao pesquisador falar em nome de outros, já a Alteridade abre ouvidos, facilita/estabelece um local para esse outro falar sobre inclusive sobre suas próprias dores.

Sobre o desapego ao close errado trago um exemplo que nos envergonha e ilustra bem a falta de deslocamento do olhar. A Startup Alemã liderada por 3 homens cis conquistou um investimento tubarão para desenvolver um produto que basicamente se define em Luvas Rosas para auxiliar mulheres na retirada dos absorventes menstruais. Meu ponto ao trazer esse exemplo é que essa luva, primeiramente, além de inútil — pois surge para resolver um problema feminino que não existe — é digna de vergonha alheia e falo, por várias questões e principalmente diante de meu local de fala como mulher, foi construída por homens que de fato não entendem nada sobre qualquer dor referente à menstruação, já que homens cis não menstruam.

E sobre esse exemplo das Luvas Rosas, me pergunto: quais ferramentas foram usadas no processo de criação dessa Startup? O que dizia no mapa de empatia das pessoas consultadas para a estratégia do negócio? Que precisamos gerar mais lixo em algo que lidamos desde sempre? Houve alguma consulta/diálogo/aproximação com quem supostamente sente essa dor?

Esse exemplo demonstra a grande importância de trabalharmos o olhar antropológico nos ambientes do mercado de trabalho, e se recortarmos entre empresas que trabalham com tecnologia, sabemos que esses ambientes majoritariamente são constituídos por pessoas que representam basicamente um único ou pouco diverso local de representatividade.

Precisamos ter em alerta máximo que não é tão simples como se desenha no mundo do design sobre entender a dor do outro!

Sim, empatia parte do campo da dor — não tem uma lógica objetiva da ação.

Alteridade busca ir além de compreender a dor e assim se aproximar de uma resposta que parte do próprio outro, sobre sua dor, por isso, precisamos o mais rápido possível fugir do campo do achismo, e partir para o campo do reconhecimento e aproximação para a construção desse outro.

A alteridade faz parte da nossa vida em sociedade; o estranhamento também faz parte e ao meu ver é positivo pois se há estranhamento há visões diferentes sobre os fatos.

Eu sou Renata Brasileiro e todos os dias exerço o estranhamento ao atuar como UX Research em contextos tão iguais, lidando diariamente com vícios que seguimos no cotidiano quando estamos adaptados a uma construção de área.

Por fim, quero ressaltar que esse texto é fruto de uma troca de conhecimento periodicamente dialogada no capítulo de design da ClickBus e que entendemos ser uma grande oportunidade para gerar diálogos, trocas e reflexões entre o time internamente, e também sendo possível ampliar esse e outros debates de forma externa como aqui estamos a produzir em nosso Medium.

Vejo que ações como essas são fundamentais para alinhamento e construção de um conhecimento coletivo de forma interdisciplinar.
Estabeleçam esses momentos de trocas, valorizem o conteúdo e conhecimento das diversas pessoas que integram sua empresa. Esse com certeza é um bom caminho!

Empatia e/ou Alteridade: um diálogo necessário e interdisciplinar.

ps:

  • Faço uso do termo escurecer em forma de posicionamento e necessidade de descolonizar expressões racistas presentes em nosso idioma.
  • Esse texto está protagonizado por minha escrita, porém tem influência e colaboração de muitas mãos, agradeço em particular a Marina Neta, Marjory Soares, Bárbara Rodrigues e Katarina Barbosa, mulheres incríveis, que considero grande base e apoio em meus desafios.

--

--

Renata Brasileiro
ClickBus Design

Mulher negra latino americana por identidade, pesquisadora por profissão, periférica por subjetividade, antropóloga de formação, atleta da criatividade.