Deveria Historiador Ser uma Profissão Regulamentada?

Da necessidade da regulamentação legal do historiador como categoria profissional

Bruno Rosa
Clio: História e Literatura
6 min readJul 11, 2019

--

Logotipo da Associação Nacional de Professores Universitários de Histórias (ANPUH)

Entre os historiadores brasileiros uma das lutas mais perenes é pela regulamentação da nossa profissão, como um ofício próprio, organizado, representado e com fiscalização. Essa é uma luta histórica, com o perdão do trocadilho horroroso, da Associação Nacional dos Professores Universitários de História, a ANPUH, órgão mais próximo de um conselho federal de historiadores operando em Pindorama na atualidade.

A ANPUH organiza periodicamente encontros, debates, seminários, ciclos, palestras e simpósios, tanto na esfera federal quanto na estadual, além de divulgar constantemente publicações acadêmicas sobre história. Isso além de ser uma espécie de comunidade mediadora entre os professores universitários de história e a opinião pública. Ela é a organização mais respeitada em termos profissionais referente ao ofício de historiador, e boa parte, ouso dizer que todos, dos pesquisadores profissionais de história estão associados a ela, dessa forma ela ganha contornos de além de uma associação de profissionais ser uma agência reguladora, por horizontalidade, da pesquisa da ciência histórica per se no Brasil.

Eduardo Bueno, exemplo típico de autor de best-sellers de história que não é historiador

No mercado editorial, entretanto, a ANPUH não tem a mesma penetração, e uma ligeira passadela na seção “História” de qualquer livraria brasileira, as que ainda resistem, mostra outro cenário: geralmente obras sem nenhum rigor acadêmico e científico que buscam vender seus volumes calcados em pseudagem, achismos e reprodução de um senso comum rasteiro, sempre acompanhados de afirmações contundentes sem a devida comprovação contundente. Com um detalhe importante e agravante: a maioria absoluta desses livros não é escrita por historiadores profissionais e publicada por editoras não especializadas em publicações acadêmicas.

Aqui preciso fazer uma distinção clara: nem toda publicação de história precisa ser acadêmica e ter profundidade historiográfica, algumas publicações, talvez a maior parte, devem servir como obras de divulgação científica e acadêmica, ou seja, ser um veículo paradidático e informativa das pesquisas científicas para o público leigo. Ou seja, boa parte da seção de “História” deveria ser preenchida por obras de divulgação e paradidáticas escritas e editadas por bons profissionais. A realidade, porém, é o contrário disso, como já vimos, realidade aberta e distorcida basicamente quando os próprios historiadores se afastaram do trabalho de divulgação. Um trabalho árduo principalmente por conta das adequações de linguagem, parece uma bobagem, porém é uma mudança profunda no discurso historiográfico, cada vez mais afastado de qualquer traço literário e mais próximo de uma linguagem técnica e acadêmica.

O Brasil Paralelo é um excelente exemplo de como o vazio nos espaços online podem ser perversos para a ciência histórica

A divulgação por bons profissionais devidamente capacitados também não ocupa outros ramos midiáticos, principalmente os virtuais. No computo atual das calendas se faz necessário ocupar espaços como as redes sociais, blogs, podcasts, YouTube, e outros veículos online de mídia de massas. Ignorar esses espaços é abrir, mais um, espaço para que más informações circulem e ocupem um espaço enorme na disputa narrativa sobre a história.

E esse é um papel social que o historiador, como pesquisador, intelectual e comunicador, não poderia nunca se abster: a disputa da narrativa histórica traz lastro para o presente, para a realidade que nos circunda. Não é à toa que pululam aqui e ali, com frequência e amplitude cada vez maiores, teorias conspiratórias sobre nosso passado, fora os revisionismos, mais para negações, rasteiros sobre a história.

Com a não regulamentação da nossa profissão volumes que prometem respostas simples para respostas difíceis, baseadas em puro sensacionalismo sem nenhum critério técnico, pululam, como os infames Guias Politicamente Incorretos

Disputas como o Golpe de 64, a dívida histórica que nossa sociedade tem com negros e povos nativos, a construção histórica e política das mulheres, entre outras tantas, chama o historiador à baila, porém, tal como uma ostra, nos fechamos para “proteger” as pérolas.

Uma medida que poderia mitigar todo esse mau uso da história por “amadores” seria justamente a regulamentação profissional do ofício do historiador: se um livro se propõe a debater e analisar eventos históricos ele precisa ser, necessariamente, ser escrito por algum historiador profissional. Aliás, não apenas a mídia escrita, mas qualquer comunicação midiática sobre história deveria ser efetuada por historiadores. O paralelo é simples: se buscamos informações sobre alguma determinada doença, buscamos essa informação junto ao médico especialista ou ao verdureiro? Então por que em história astrólogos e “herdeiros imperiais numa república” podem falar sobre história com ares e chancela de autoridade?

Carl Sagan foi um bom exemplo de como é possível ser acadêmico e ainda assim fazer boa divulgação científica

O cerne desse problema está justamente no senso comum, não raro ainda encontramos pessoas que acreditam ser a história um ramo do conhecimento meramente opinativo, um “eu acho” constante baseado, e apenas baseado, no corolário ideológico daquele que emite tal opinião. Voltemos ao médico e ao verdureiro: o segundo pode emitir qualquer opinião sobre medicina, assim como o primeiro pode emitir qualquer opinião sobre a qualidade das verduras na feira, porém se quisermos informação sobre medicina e verduras não poderíamos trocar as bolas.

Resumir a história, e todas as ciências sociais e humanas, ao campo da opinião, que como Platão bem resume sendo o grau zero do conhecimento, é justamente a estratégia de quem ataca a academia e a intelectualidade: um torpor ardiloso em busca do caos narrativo e diluição da verdade. Essa estratégia é bem condizente com tempos onde impera a pós-verdade…

Prédio de História, da FFLCH/USP, local onde o autor desse texto iniciou seus estudos históricos. É nos espaços acadêmicos que deveriam ocorrer a formação de profissionais capacitados para escrever, analisar e interpretar a história

É preciso dizer de forma clara, em alto e bom tom: história, a ciência histórica, não é opinião, e não é apenas a rememoração daqueles que viveram no tempo passado. Nem a memória social, aquele par indesejado, porém por ele atraído da história, é isso ou tem essa função. A história é uma ciência com métodos, com regra, com formas, com teoria, com usos, com ramificações, e como tal precisa ser executada por profissionais devidamente capacitados.

Não estou a negar ao vulgo o direito à opinião, muito pelo contrário, a opinião é um excelente instrumento pedagógico para desconstruirmos o senso comum e assim construir um precioso conhecimento histórico. Porém opinião é uma coisa, informação e conhecimento é outra: ao primeiro cabe a todos nós, vulgo ou especialista, já aos segundos cabe apenas ao especialista.

Dessa forma fica evidente o quanto urge a necessidade de uma verdadeira regulamentação profissional do historiador, ela ajudaria muito a evitar que a história, tanto a ciência quanto a outra, sofresse tantos ataques e se tornasse um encanecido campo de batalha de narrativa, onde precisamos afirmar e reafirmar o óbvio a todo instante. Em tempos de pós-verdade e caos narrativo é preciso trazer rigor e ordem para que Clio não quebre sua lira e silencie sua trombeta.

Campanha de Assinatura no Catarse
Entre no link https://www.catarse.me/clio e conheça a nossa campanha de financiamento coletivo no Catarse, a partir de R$ 5,00 você já ajuda o Clio a se manter no ar e produzir mais conteúdos para vocês

Financiadores desse post:
Cristina Lima, Humberto Athayde Jr., Marcelo Kriiger Loteiro, Natália Gonçalves Castilho, Gabriel Bastos, Paula Guisard, Rosana Athayde Vecchia, Suzana Athayde

--

--

Bruno Rosa
Clio: História e Literatura

Professor e historiador por profissão e vocação, escritor e fotógrafo por amor, palmeirense sofredor, além de humanista ateu convicto e ecossocialista.