Água Viva
Nunca imaginei chegar até aqui mais cansado do que vivo, mais pesado que experiente
Menos preocupado com as dores no corpo que com as dores de dentro, das veias, da lava sanguínea, das pedras soltas que ralam o peito, esse peito em chamas que abriga ainda um coração que bate, que bate, que bate tanto
Que dói
Eu sinto muito e cansei cansei cansei de sentir tanto e não poder fazer nada nada nada com isso tudo
O que farei eu, ínfimo, com tanta coisa misturada, infinita?
Tanto amor que amei e que sequer experimentei, degustei, lambi, mordi, fiquei, morei como queria ter vivido
Tanta vontade, desejo, riso preso, gargalhada represada, suspiro comprimido, respiro afogado, água, água parada que não mergulhei
Nunca pensei que chegaria até aqui
Vivo
A espera, não de morrer, — pois a morte é condição de quem vive -, mas no aguardo, ainda, do encontro verdadeiro, derradeiro, inteiro, fundido, completo comigo em mim mesmo
Já fiz muito e ainda acho pouco
Percorri anos e anos pelos calendários gregorianos, horas em cima de horas ritmadas e cronológicas, cresci, vi nascer dentro de mim um homem jovem, os pelos maduros, os cabelos esbranquiçados, as rachaduras, as marcas, as rupturas, frestas, abismos, fendas intransponíveis
Já fui moleque, não parava quieto, desejava, desejava, deseja apenas, crescer e gastar a energia contida no meu ser que nada sabia sobre os muros, as grades, arames farpados, das guerras, internas, batalhas diárias
Já fui jovem refletido no espelho
Nos olhos soberba, nos braços invencibilidade, nas pernas pressa, no pau potência, no coração fogo, massa, chaga
Ardia o corpo todo mas a brasa, a brasa foi abafada, não pelo correr do tempo que apaga tudo, mas pelo sopro dos outros, ou pela falta de sopro, dos outros, que deveriam me alimentar
Apaguei porque busquei
Busquei refúgio no outro, esticava as mãos em busca de solução, como quem diz “Venha me salvar”, “Puxe-me daqui, deste buraco que eu mesmo construí”
O outro passava, às vezes nem me olhava, noutras vezes piscava e eu me entregava
Dou-lhe minha vida então, me dê somente sua mão
Desamparado
Depois, somente bem depois compreendi
Nascemos todos sozinhos aqui, partimos mais solitários que chegamos e o percurso, ah o percurso, ilude até mesmo os mais astutos e versados nos tombos e declives da saga chamada vida
Não há quem preencha, não existe nada que complete, não há salvador, santo, protetor, amante, amigo, dinheiro, tesouro, comida, bem, coisa, objeto, sentimento, memória
Não há
Talvez haja apenas esse conjunto
Uma coleção particular e única de cada ser sozinho, sozinho, sozinho, que carrega em sua bagagem, no âmago de sua única existência, alguma razão, algum mais ou porque de viver
Ainda não compreendi, tampouco me conheci, hoje mesmo não me encontrei, ontem parece agora, amanhã não existe, tudo o que mais quero está fora
Tentei, vivi, tentei e tentei encontrar abrigo na solidão, que é tão íntima, é tão minha que qualquer ser que se aproxime é imediatamente sugado e repelido
Buracos negros são a vida em estado bruto
Estou em carne viva e me felicito
Ainda bem que sinto
#desafio003novembro