Água Viva

Laura Caldas Chadarevian
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readNov 25, 2021

Nunca imaginei chegar até aqui mais cansado do que vivo, mais pesado que experiente

Menos preocupado com as dores no corpo que com as dores de dentro, das veias, da lava sanguínea, das pedras soltas que ralam o peito, esse peito em chamas que abriga ainda um coração que bate, que bate, que bate tanto

Que dói

Eu sinto muito e cansei cansei cansei de sentir tanto e não poder fazer nada nada nada com isso tudo

O que farei eu, ínfimo, com tanta coisa misturada, infinita?

Tanto amor que amei e que sequer experimentei, degustei, lambi, mordi, fiquei, morei como queria ter vivido

Tanta vontade, desejo, riso preso, gargalhada represada, suspiro comprimido, respiro afogado, água, água parada que não mergulhei

Nunca pensei que chegaria até aqui

Vivo

A espera, não de morrer, — pois a morte é condição de quem vive -, mas no aguardo, ainda, do encontro verdadeiro, derradeiro, inteiro, fundido, completo comigo em mim mesmo

Já fiz muito e ainda acho pouco

Percorri anos e anos pelos calendários gregorianos, horas em cima de horas ritmadas e cronológicas, cresci, vi nascer dentro de mim um homem jovem, os pelos maduros, os cabelos esbranquiçados, as rachaduras, as marcas, as rupturas, frestas, abismos, fendas intransponíveis

Já fui moleque, não parava quieto, desejava, desejava, deseja apenas, crescer e gastar a energia contida no meu ser que nada sabia sobre os muros, as grades, arames farpados, das guerras, internas, batalhas diárias

Já fui jovem refletido no espelho

Nos olhos soberba, nos braços invencibilidade, nas pernas pressa, no pau potência, no coração fogo, massa, chaga

Ardia o corpo todo mas a brasa, a brasa foi abafada, não pelo correr do tempo que apaga tudo, mas pelo sopro dos outros, ou pela falta de sopro, dos outros, que deveriam me alimentar

Apaguei porque busquei

Busquei refúgio no outro, esticava as mãos em busca de solução, como quem diz “Venha me salvar”, “Puxe-me daqui, deste buraco que eu mesmo construí”

O outro passava, às vezes nem me olhava, noutras vezes piscava e eu me entregava

Dou-lhe minha vida então, me dê somente sua mão

Desamparado

Depois, somente bem depois compreendi

Nascemos todos sozinhos aqui, partimos mais solitários que chegamos e o percurso, ah o percurso, ilude até mesmo os mais astutos e versados nos tombos e declives da saga chamada vida

Não há quem preencha, não existe nada que complete, não há salvador, santo, protetor, amante, amigo, dinheiro, tesouro, comida, bem, coisa, objeto, sentimento, memória

Não há

Talvez haja apenas esse conjunto

Uma coleção particular e única de cada ser sozinho, sozinho, sozinho, que carrega em sua bagagem, no âmago de sua única existência, alguma razão, algum mais ou porque de viver

Ainda não compreendi, tampouco me conheci, hoje mesmo não me encontrei, ontem parece agora, amanhã não existe, tudo o que mais quero está fora

Tentei, vivi, tentei e tentei encontrar abrigo na solidão, que é tão íntima, é tão minha que qualquer ser que se aproxime é imediatamente sugado e repelido

Buracos negros são a vida em estado bruto

Estou em carne viva e me felicito

Ainda bem que sinto

#desafio003novembro

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Laura Caldas Chadarevian
Clube da Escrita Afetuosa

Entre poesias, contos, roteiros, desabafos, fantasias, procuro-me. Portas abertas, entre sem bater.