É de família

Cecilia Etchecoin
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readJun 11, 2021

Desafio 004 Maio

“Que saudade da Carmem. Vou ligar para ela com imagem de TV ”.

Era assim que minha avó decidia ligar para as pessoas usando a recém descoberta chamada de vídeo. Nunca planejava, nunca escolhia uma data especial, muito menos um horário apropriado. Ela ligava quando o amor e a saudade se uniam.

As unhas longas — e sempre vermelhas — atrapalhavam na hora de apertar os botões. O barulho alto das unhas na tela do celular era a prova de que ela não desistia facilmente. “Tá difícil aqui, mas já vou dar meu jeito”, ela dizia, com aqueles lábios sempre pintados com um batom forte, daqueles que só usa quem não tem medo de ser o que realmente é. Oferecia sempre minha ajuda, mas ela preferia a estratégia do erro e acerto. “Se você fizer, não vou aprender nunca!”.

A vista também não ajudava na hora de usar o celular. Uma lupa era sua mão direita na hora de ler jornais e de tentar falar com os amigos pelas chamadas de vídeo. “Consegui!”, dizia minha avó, com aquela voz ao mesmo tempo forte e alegre.

Suas vídeo chamadas eram uma gritaria desconcertante. O mundo online era difícil para ela. Gritar era uma forma de trazer a pessoa para perto. Tentei explicar a etiqueta dos encontros online. Não precisava falar tão alto, não devia colocar o celular tão perto do rosto, ou ficar falando com as mãos enquanto segurava o aparelho. Me agradecia pelas dicas, mas não as aplicava. Confiava nos gritos e no movimento para parecer que estava ali, bem juntinho dos que amava.

“Vó, comprei um IPad para suas ligações com imagem de TV ficarem maiores”, disse animada no dia do seu 96o aniversário. Ela olhou, sorriu, já sem o batom vivo nos lábios, e agradeceu com um carinho daqueles que abraçam o coração.

Nunca usou o IPad. Ela se foi uma semana depois. Liguei para ela com imagem dois dias antes e ela apertou certinho o botão. “Viu, sem as unhas fica mais fácil!”, falei. Ela riu, me contou que tinha sonhado com uma luz no fim do túnel e que não foi até ela pois ainda tinha alguns dias para viver. Na noite seguinte a luz deve ter parecido bem mais atraente.

Isso tem alguns anos e o IPad agora está comigo. Apesar de velho, usei muito na pandemia para ver aqueles que amo. Quando a saudade batia, era o que me salvava. “Mãe, como você grita quando fala no Zoom!”, disse minha filha. Sorri com a crítica que, aos meus ouvidos, soou como elogio.

--

--

Cecilia Etchecoin
Clube da Escrita Afetuosa

Na busca da escrita como terapia! Fundadora do site Nossas Palavras @nossaspalavrasbr — um espaço aberto para as vozes femininas!