ÚLTIMO GOLE

Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMay 11, 2022

Desafio #01MAI22

Separação é uma cirurgia sem anestesia. É colocar o bisturi e abrir a barriga de cima a baixo; escancarar o peito. Deixar jorrar o sangue; verter toda a desalegria. E depois encher a cara feito um condenado insuspeito, na primeira mesa de plástico ou metal do bar na esquina mais próxima.

Separação é engolir, em uma única golada, a cerveja quente. Tragar a bagana de cigarro no canto da boca, derramar sobre a bebida as lágrimas mais toscas diante do gesto final, do ponto de exclamação impiedoso que teve que escutar, calado. Comer restos de petiscos já passados e cheios de mosca. E ali, diante do copo mal lavado da inclemência, cuspir a angústia comiserada da perda do que já não vinha sendo, mas que insistiu em continuar bebendo na fonte maltrapilha da paixão. Na inquestionável entrega de corpos e da própria indecência incontida das estranhas entranhas dos amantes.

Mal deu tempo para o arrependimento se manifestar, diante da torturante dor da facada e do tudo escrachado no final, sem direito à penitência; tampouco dose extra de oxigênio lhe foi permitido. Não houve bisturis, qualquer instrumental pra conter o sangramento, já incontinente — falou cabisbaixo, afogado em alcoólicas lágrimas. Nada! E socou o ar como quem desejasse socar-se primeiro.

Disse-me isso naquela mesa de bar, como se fora uma confissão desesperada; uma angústia sem tempo, sem força pra passar. Aquele esboço de gente ali desamada, trôpego, arrebatado de aflições. Contava-me sem vírgulas, em uma algaravia enfadada do coração cambaleante e dilacerado.

Dissertou-me sobre a paixão, os dias a dois felizes. E os momentos de intrigas que queria esquecer. Que disposto estava em desculpar, em aquiescer. Não houve mais tempo. A cirurgia fora inevitável. Não houve como recompor órgãos, sentidos, abraços. Ali, naquele bar, ele deu o último suspiro absorto e surdo do amor, como se deitado na sala de cirurgia tentasse pular da maca estreita onde jazia dentro de si mesmo. Já respirava com ajuda de aparelhos aquela relação. Batimentos em inquietante aceleração davam sinais do derradeiro momento. E foi.

Cirurgia sem anestesia. Assim descreveu a separação.

E, prostrado sobre a mesa, com olhos esbugalhados vermelhos, mãos trêmulas e mente em ebulição, levantou-se, exasperado. Tomou o último gole de cerveja de uma vez só. Deu um suspiro. E se foi da mesma forma que chegou. Meio de lado, derrubou o copo. Entornou a mágoa; secou a lista do ‘E se…’. Foi embora assim… anestesiado pela dor. A dor dilacerante e exaustiva do não.

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Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.