O ABRAÇO DO CURUPIRA
#01ABRIL22
As águas barrentas do rio teciam o caminho natural até o local escolhido para a ação solidária daquele ano. No trajeto, olhar a cidade se apequenar diante daquele tapete fluvial, engrandecia ainda mais as palafitas existentes. E resistentes às intempéries do tempo e do clima quase sempre chuvoso da região amazônica. Marina sabia que precisava de intervalos de desconexão como aquele. Somente eles seriam capazes de imergir em si mesma sem pressa pra voltar à tona.
Matizes de verde emolduravam um lado e outro do rio. O protegiam, de certa forma. Era inevitável que os pensamentos dela não navegassem entre os furos estreitos naquela imensidão de água. Como seria morar tendo o rio como quintal? Acordar, olhar pra ele, fazer a higiene, pescar, tomar banho…viver dentro dele?
Marina refletia sobre a força divina capaz de arquitetar tudo aquilo, com tamanha exatidão de contrastes, quando o barco finalmente atracou no trapiche da ilha onde desceriam para doar brinquedos, livros e, especialmente, atenção e afeto às crianças ribeirinhas.
Desceu enjoada por causa das maresias enfrentadas — a do rio e a da própria vida. Mal teve tempo de se recompor, quando uma mãozinha tocou-lhe a cintura. Chamava-se Pereirinha. Um curumim de cabelos eriçados e avermelhados. Falante e ávido pelas novidades que o grupo levara. Mas principalmente, por mostrar seu habitat aos visitantes.
A ilha com nome indígena carregava a magia das lendas amazônicas que Pereirinha ia logo fazendo questão de contar. Após meia hora caminhando de uma ponta a outra do local, sentaram-se, ela e Pereirinha, em um toco de árvore. Observaram e riram das crianças brincando de bola dentro do rio. Pulavam e se jogavam na água como se fossem botinhos cor de rosa — famosos no Pará.
A senhora já ouviu falar do Curupira ( personagem da lenda amazônica que tem os pés virados pra trás)?, perguntou Pereirinha. À resposta positiva, o menino se pôs a contar que durante as noites, fica na beira do trapiche pra ver o Curupira passar. Não tens medo dele?, perguntou Marina. Claro que não, disse Pereirinha. Ele apenas protege a floresta. E ainda imitou o grito da assombração. Marina ria por dentro. Estava encantada.
Ficaram ali sentados. Ela, Pereirinha e o toco de árvore; e se abraçaram como se há muito se conhecessem. Então veio a pergunta sobre o que Marina ganharia como presente de Natal. Nada, disse-lhe. E Pereirinha: E nem um abraço? Meio constrangida, ela disse: Sim, sim. Isso, sim! Então, esse é seu presente! E é o melhor, porque é de graça, arrematou Pereirinha; e antes mesmo de sair correndo entre as árvores, pulando e dando uivos de alegria, fechou os braços em um abraço apertado em Marina. Ela emudeceu. Apenas fechou os olhos pra sentir a energia toda daquela floresta concentrada naquele ato breve, porém puro e de incontestável afeto.
De volta ao trapiche, ela deu mais uma olhada antes de entrar no barco. Mas sem rastros de Pereirinha. Entre as árvores, percebeu uma espécie de sombra que ziguezagueava rapidamente. Foi tudo. Nem mais um sinal.
Marina havia ancorado suas emoções ali. Deixou presentes, livros, brinquedos, comida. Levou, porém, o abraço mais gratuito e fiel que jamais esqueceria. Tinha cheiro de orvalho da manhã e gosto de silêncios noturnos em madrugadas à beira do cais. Jamais esqueceu de Pereirinha.
Naquela mesma noite, ela ouviria, já entre quatro paredes mudas, um grito distante e longo, de timbre alto e estridente. Fechou as luzes; cerrou os olhos. Cobriu-se com o lençol. Pra ela, o menininho da ilha teria dado sinais apenas pra lembrar que quem flerta com a floresta, está conectado com ele também. Sentiu o pelo eriçar. Era o Curupira feito menino que a tinha visitado pra novamente a abraçar.