42 voltas ao sol

Laura Caldas Chadarevian
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readSep 25, 2021

Não me leu

Não me olhou

Não me falou

Também nunca te falei, mas sempre pude ouvir o que dizia, especialmente quando não dizia nada

Cansei de contar as mais de mil noites que viveu, neste mesmo planeta do que eu, e desapareceu

Você se veste tão mal, falou e torceu assim para mim a sua boquinha

Que vergonha, engoli mais uma vez o choro

Dessa vez, por muito pouco não me engasguei

Desabei, como sempre, longe, bem longe de você

Para que nunca sentisse a vergonha que sinto de mim

Um dia disse que a minha blusa era linda

Respondi que não, não era nada, era sim muito velha, trocada em um bazar decadente na boca do lixo da cidade

Escondi sistematicamente minha inadequação de você

Que curioso, hoje é você que se esconde para sempre de mim

Sua imagem tem sumido daqui de dentro, mesmo que eu a retoque, bote por cima muito perfume e maquiagem, sature a sua fotografia, pinte seus traços de cor bem forte, force todos os seus contornos.

Assim mesmo, pouco a pouco, você me some

Alguns dias especiais ainda resistem. Sobretudo os dias mais tristes

O dia que me convidou para dormir na sua casa ainda tem cor

A colcha da cama verde listrada, o almoço amarelo de pastel na feira, o meu coração vermelho apaixonado, o vômito marrom me escapando aos jatos

A vergonha, minha mais fiel companheira, você me lavando na sua banheira

O dia que me perguntou se eu não iria comemorar, te respondi sincera, talvez pela primeira vez, que não

Fazer aniversário me fragiliza

Você nunca esqueceu o meu

Até hoje confundo o seu

Falar em público ainda me angustia

Prefiro morrer a ficar fraca

Daquela vez que partiu, definitivamente, para sempre de mim, achei que eu não voltaria

E quando esteve doente, verdadeiramente doente, do tipo que não tem cura e os médicos só falavam em sobrevida, e você se irritava com essa palavra, senti dó

Guardei

Você, sempre ao contrário de mim, se revelava

É câncer

Não sentiu vergonha de simplesmente morrer?

Você nunca me preparou para nada e eu, como sempre, me alienava

Preferia afastar o que doía, o que partia, o que quebrava e evaporava

Mas é que fazer aniversário me apavora

Talvez pelo correr do calendário, que não releva

Ou então pelo se aproximar da exata hora

Que nunca é boa, nunca é certa, tampouco apropriada

Carregar a gente mesmo por tanto tempo cansa

Fazer 40 me abalou e me fez sentir que o peso dos acontecimentos corpulentos me envergavam

Decidi despir

Sonhei que andava pelada por aí, acordei meio sem vergonha, deixei a raiva entrar, chamei as feridas purulentas para conversar

Ouvi Beatles e consegui

Finalmente desengasgar

Abracei, como quem nina um neném, todos os mais fiéis companheiros

O medo de dormir e amanhecer sozinha, o pavor de me perder na luz apagada, o apego pela minha nada estável aparência, o terror em me expor, as suas críticas sempre reveladas

Você não me leu e então virei a página

Falei em público

Reclamei

Disse que não

Contei onde dói

Percebi que não foi tão herói assim

Me dei de presente todas as suas permissões censuradas

Não pretendo mais ser perfeita

Queria te contar

Picotei em pedacinhos bem miudinhos e queimei

Todas as suas críticas mais destrutivas

Os elogios, guardei

Para mim serão sempre sinceros

Só mais uma coisinha

Aprendi a comemorar todas as minhas conquistas

Não sei se ainda se lembra, mas por aqui completo 42 voltas ao sol

#desafio004setembro

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Laura Caldas Chadarevian
Clube da Escrita Afetuosa

Entre poesias, contos, roteiros, desabafos, fantasias, procuro-me. Portas abertas, entre sem bater.