42 voltas ao sol
Não me leu
Não me olhou
Não me falou
Também nunca te falei, mas sempre pude ouvir o que dizia, especialmente quando não dizia nada
Cansei de contar as mais de mil noites que viveu, neste mesmo planeta do que eu, e desapareceu
Você se veste tão mal, falou e torceu assim para mim a sua boquinha
Que vergonha, engoli mais uma vez o choro
Dessa vez, por muito pouco não me engasguei
Desabei, como sempre, longe, bem longe de você
Para que nunca sentisse a vergonha que sinto de mim
Um dia disse que a minha blusa era linda
Respondi que não, não era nada, era sim muito velha, trocada em um bazar decadente na boca do lixo da cidade
Escondi sistematicamente minha inadequação de você
Que curioso, hoje é você que se esconde para sempre de mim
Sua imagem tem sumido daqui de dentro, mesmo que eu a retoque, bote por cima muito perfume e maquiagem, sature a sua fotografia, pinte seus traços de cor bem forte, force todos os seus contornos.
Assim mesmo, pouco a pouco, você me some
Alguns dias especiais ainda resistem. Sobretudo os dias mais tristes
O dia que me convidou para dormir na sua casa ainda tem cor
A colcha da cama verde listrada, o almoço amarelo de pastel na feira, o meu coração vermelho apaixonado, o vômito marrom me escapando aos jatos
A vergonha, minha mais fiel companheira, você me lavando na sua banheira
O dia que me perguntou se eu não iria comemorar, te respondi sincera, talvez pela primeira vez, que não
Fazer aniversário me fragiliza
Você nunca esqueceu o meu
Até hoje confundo o seu
Falar em público ainda me angustia
Prefiro morrer a ficar fraca
Daquela vez que partiu, definitivamente, para sempre de mim, achei que eu não voltaria
E quando esteve doente, verdadeiramente doente, do tipo que não tem cura e os médicos só falavam em sobrevida, e você se irritava com essa palavra, senti dó
Guardei
Você, sempre ao contrário de mim, se revelava
É câncer
Não sentiu vergonha de simplesmente morrer?
Você nunca me preparou para nada e eu, como sempre, me alienava
Preferia afastar o que doía, o que partia, o que quebrava e evaporava
Mas é que fazer aniversário me apavora
Talvez pelo correr do calendário, que não releva
Ou então pelo se aproximar da exata hora
Que nunca é boa, nunca é certa, tampouco apropriada
Carregar a gente mesmo por tanto tempo cansa
Fazer 40 me abalou e me fez sentir que o peso dos acontecimentos corpulentos me envergavam
Decidi despir
Sonhei que andava pelada por aí, acordei meio sem vergonha, deixei a raiva entrar, chamei as feridas purulentas para conversar
Ouvi Beatles e consegui
Finalmente desengasgar
Abracei, como quem nina um neném, todos os mais fiéis companheiros
O medo de dormir e amanhecer sozinha, o pavor de me perder na luz apagada, o apego pela minha nada estável aparência, o terror em me expor, as suas críticas sempre reveladas
Você não me leu e então virei a página
Falei em público
Reclamei
Disse que não
Contei onde dói
Percebi que não foi tão herói assim
Me dei de presente todas as suas permissões censuradas
Não pretendo mais ser perfeita
Queria te contar
Picotei em pedacinhos bem miudinhos e queimei
Todas as suas críticas mais destrutivas
Os elogios, guardei
Para mim serão sempre sinceros
Só mais uma coisinha
Aprendi a comemorar todas as minhas conquistas
Não sei se ainda se lembra, mas por aqui completo 42 voltas ao sol
#desafio004setembro