A ALMA QUE ME HABITA

Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readApr 18, 2022

Por Carmen Palheta

#02ABRIL2022

Pouco mais de cincoenta metros quadrados nos aguardavam. Neles, eu, meus pais e dois irmãos teríamos que encolher móveis de sala, camas, armários, estantes com livros. Tudo pra poder caber lá dentro.

Um quarto (eram apenas dois) seria compartilhado por quase dez anos, com meus manos. Lá, riríamos muito dos pesadelos que eu tinha e que me faziam gritar de madrugada. E também, em outras ocasiões, na janela daquele mesmo quadrado, eu choraria muitas vezes. De saudade. De solidão. De amor.

Não foram tempos tão fáceis. Principalmente pra minha mãe, acostumada a largos espaços e quintal com plantas. Mas acumulamos dias de flores amarelas e sementes férteis, mesmo em terreno de concreto. À medida que o tempo passava, mais memórias foram sendo agregadas. Materiais e afetivas. Mas um fato inusitado, um divisor de águas, nos tirou de lá. Meu pai enfartara. Precisava, justamente, de um lugar maior. Alargamos o campo de visão. Saímos.

Anos depois, quando resolvi morar sozinha, foi pra lá que voltei. Parecia uma contradição parar justamente no lugar onde espaço havia sido tão escasso. Mas aceitei a proposta de meu pai, que disse: É teu! E comecei uma grande reforma. No apartamento e, sobretudo, dentro de mim. Durou o tempo de uma gestação. Na primeira noite em minha própria companhia, confesso que senti o corpo se libertando. E a alma, enfim, desatada; porém inteira. Refeita entre cacos. Intacta em minha solidão. E com muito chão e teto pra sonhar entre livros, vinhos e algumas besteiras.

Cantinhos acanhados foram surgindo, reproduzindo a vastidão de meu mundo. O que parecia pequeno há alguns anos, dilatou-se. Porque é igualmente grandioso o que sinto quando estou lá.

Solene, uma poltrona de leitura me aguarda todas as noites em uma quina da saleta de livros improvisada. É onde renovo as energias. E de onde eles, os livros, me olham esperando a próxima chamada. Bibelôs, presentes, imagens sacras, lembranças de viagens realizadas. Miniaturas traduzem sonhos, paixões, desejos. E fé que precisa ser reabastecida ininterruptamente. Está quase tudo ali. E quase não me falta nada.

Meu canto cresceu! E eu também. Já não sinto vazios desmedidos. Todos possuem altura, largura e profundidade. Não preciso mais encolher sonhos. Hoje escolho os que de fato me engrandecem a alma. Tudo o que sinto lá dentro possui a imensidão desmedida, indizível e contraditória dela.

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Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.