A casa da rua Argonautas

Lu Rodrigues
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readJun 27, 2022

Diz a lenda grega que os Argonautas foram tripulantes da nau Argo, cuja missão era encontrar o manto de ouro de um carneiro mágico. Não se sabe por qual motivo, mas “Argonautas” virou nome de rua na Vila Formosa, periferia de São Paulo.

E foi lá na rua Argonautas, bem distante das desventuras dos heróis gregos, que o imigrante português Manoel decidiu comprar um pedacinho de terra para seu pai. Seu Albino já estava velho e cansado. Mas finalmente tinha chegado a hora de realizar um antigo sonho: fincar raízes.

A vida já tinha sido difícil demais para pai e filho. Vieram para o Brasil de navio, nos anos vinte. Manoel tinha nove anos de idade. Ao contrário dos Argonautas, os dois não queriam fama ou fortuna. Apenas fugiam. Da pobreza e do luto. A matrona da família foi acometida pela gripe espanhola. E não resistiu. Seu Albino costumava esbravejar: “Maldita peste!” A perda da mulher fez a amargura crescer em seu peito.

Chegaram em São Paulo e foram trabalhar nas fábricas do Brás. Ficaram anos a fio morando nos cortiços do bairro. Manoel guardou dinheiro. Casou-se com uma italiana de sangue quente. Teve três filhos. E quando a vida deu uma brecha, comprou uma casa para o pai na Vila Formosa.

Foi num tempo em que o bairro da zona leste paulistana ainda era um matagal só. A casa era longa e compartimentada. Cheia de pequenas frestas e labirintos, que só um morador sabia decifrar. Nos fundos, seu Albino construiu um alojamento para coelhos. Ele matava os pobres bichinhos para comer. Dizia que era a carne mais saudável: “Ora bem, os coelhos são deliciosos!”

Mas os netos achavam que o velho Albino gostava de deixar os animais sangrarem até morrer.

Tornou-se mesmo um velho sádico e solitário. Triste. Tinha traços fortes e um osso saliente no nariz que marcava seu rosto. Com o decorrer dos anos, começou a ter dificuldades para andar. Passou a usar uma bengala de bambu. Ficou encurvado.

Manoel preocupava-se com o pai. Pensou em levá-lo para morar com a família dele. Mas Albino não queria sair de lá de jeito nenhum: “Vou morrer aqui. E ficar nesta terra para sempre.”

E foi o que aconteceu. Encontraram o velho Albino morto na poltrona da sala, com a TV ligada. Manoel decidiu mudar-se para a casa com a esposa e os filhos. Era uma forma de honrar o pai. Viveu no imóvel por mais de quarenta anos até morrer de infarto fulminante no quintal. Foi na mesma época que seu filho do meio, João, comprou a parte das irmãs na casa.

João casou-se e teve duas filhas. Herdou do pai e do avô o apego à casa da rua Argonautas. Nada lá podia estar fora do lugar. Obrigava a mulher e as filhas a fazer faxina nos cômodos, todas as segundas, quartas e sextas.

A caçula de oito anos foi tomada pela raiva do lugar. Achava aquele apego todo uma coisa bem esquisita. Seu pai dava mais atenção a casa do que a ela. Não passeavam. Não viajavam. João temia que alguém roubasse seu precioso imóvel.

A menina cresceu olhando pela janela do quarto o mundo lá fora.

Os homens da família queriam raízes. As mulheres sonhavam com asas. A mãe e a irmã mais velha também sentiam-se presas ao lugar. Mas tinham medo de enfrentar João.

A caçula passou a acreditar que a casa era mal assombrada pelo espírito do velho Albino. Certa vez, viu um velho sentado na poltrona da sala. Ele virou para ela e sorriu. Com a boca suja de sangue, mastigava os pedaços de um coelho morto. Acordou congelada pelo medo. Não sabia mais o que era pesadelo. E o que era realidade.

Insistiu para o pai que vendessem a casa. Mas ele já estava com as raízes fincadas no terreno do avô. Era um sentimento que passava para os homens da família. De geração para geração.

Com o tempo, João foi ficando cada vez mais parecido com Albino. No semblante. Na alma soturna. E no apego à casa da rua Argonautas.

A mãe, assim como a bisavó das meninas, morreu vítima de uma pandemia: o coronavírus. João, tal como Albino, ficou viúvo. As filhas acreditavam que cabia a elas, as mulheres da família, romper com aquele lugar. Deixaram a casa.

O pai ficou.

João morreu anos depois na poltrona do avô, com a TV ligada. Suas filhas jamais conseguiram vender a casa. Nunca apareceu um comprador.

Até hoje os vizinhos insistem que a casa da rua Argonautas é mal assombrada. Mas ninguém conseguiu provar. O certo é que o imóvel ficou lá. Abandonado. Com pó acumulado pelo tempo e memórias amargas demais para serem dissipadas pelo ar.

#02jun22

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Lu Rodrigues
Clube da Escrita Afetuosa

Escritora e jornalista. Aqui publico meus textos da comunidade de escrita da Ana Holanda. Site: www.maenuscritos.com.br Insta:@lurodriguesescritora