A casa do Brooklyn

Laize Barros
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readFeb 23, 2021

As rachaduras na parede branca do longo corredor que atravessamos para chegar na cozinha da casa da frente e de onde avistamos o quintal não fazem jus às histórias daquela casa que o Major comprou com seus soldos de Sargento.

Queria pintar de amarelo, eternamente amanhecendo, como fiz quando a casa foi minha. Encher de flores e plantas. Manter viva sua beleza e honrar sua história.

A casa.

Casa do avó.

Nasceu militar e a farda era sua alma externa. Lutou na Revolução de 30 em defesa de São Paulo, era da Força Pública, bombeiro. Era carioca. Trocou seu sobrenome porque não aceitou a traição do bisavó mouro com a bisavô, cozinheira de mão cheia.

Aposentou cedo porque perdeu um dos dedos polegares.

O “barracão”, uma marcenaria no fundo do quintal, virou seu quartel. Lá passava horas e fazia velocípedes, triciclos e traquitanas para os netos. Quando as crianças curiosas iam espiá-lo em seu refúgio, logo dizia “foge daqui senão te passo o sarrafo”. Se fazia de bravo.

Fazia café meticulosamente. Pó fervido na água e coador de pano. Enrolava e batia cada cigarro antes de acender, com fósforos, seus olhos acompanhavam a fumaça e parecia sonhar e ir pra outro lugar. Só largou o vício ao adoecer prá lá de 80 anos.

Alvorovó.

Em minhas memórias ou devaneios, o vejo de terno branco me ninando na cozinha da casa da frente.

Posso vê-lo ainda atravessar este mesmo corredor, de terno escuro, chapéu e perfume de Alma de Flores trazendo cocadas brancas e pretas de Pirapora, cidade onde todas as crianças da família receberam bençãos por nascer.

Seu chapéu foi do pai e hoje está morando aqui, assim como a cadeira onde fumava e mais ouvia que falava, ficou comigo também o velho criado-mudo onde ficava o rádio de pilhas pra ouvir luta-livre.

Não há rachaduras na casa de minha memória, ela permanece intocável, alegre, com galinhas e ameixeira no quintal, rua de terra e o longo corredor pra tomar banho de chuva.

No refúgio de afetos da memória a casa ainda é sua, meu avó.

--

--

Laize Barros
Clube da Escrita Afetuosa

Ajudo pessoas a alinhar vida e carreira. Psicóloga mestre psicanálise e educação -usp. Escritora de minhas histórias e das que espio nas janelas da vida.