A casa do Brooklyn
As rachaduras na parede branca do longo corredor que atravessamos para chegar na cozinha da casa da frente e de onde avistamos o quintal não fazem jus às histórias daquela casa que o Major comprou com seus soldos de Sargento.
Queria pintar de amarelo, eternamente amanhecendo, como fiz quando a casa foi minha. Encher de flores e plantas. Manter viva sua beleza e honrar sua história.
A casa.
Casa do avó.
Nasceu militar e a farda era sua alma externa. Lutou na Revolução de 30 em defesa de São Paulo, era da Força Pública, bombeiro. Era carioca. Trocou seu sobrenome porque não aceitou a traição do bisavó mouro com a bisavô, cozinheira de mão cheia.
Aposentou cedo porque perdeu um dos dedos polegares.
O “barracão”, uma marcenaria no fundo do quintal, virou seu quartel. Lá passava horas e fazia velocípedes, triciclos e traquitanas para os netos. Quando as crianças curiosas iam espiá-lo em seu refúgio, logo dizia “foge daqui senão te passo o sarrafo”. Se fazia de bravo.
Fazia café meticulosamente. Pó fervido na água e coador de pano. Enrolava e batia cada cigarro antes de acender, com fósforos, seus olhos acompanhavam a fumaça e parecia sonhar e ir pra outro lugar. Só largou o vício ao adoecer prá lá de 80 anos.
Alvorovó.
Em minhas memórias ou devaneios, o vejo de terno branco me ninando na cozinha da casa da frente.
Posso vê-lo ainda atravessar este mesmo corredor, de terno escuro, chapéu e perfume de Alma de Flores trazendo cocadas brancas e pretas de Pirapora, cidade onde todas as crianças da família receberam bençãos por nascer.
Seu chapéu foi do pai e hoje está morando aqui, assim como a cadeira onde fumava e mais ouvia que falava, ficou comigo também o velho criado-mudo onde ficava o rádio de pilhas pra ouvir luta-livre.
Não há rachaduras na casa de minha memória, ela permanece intocável, alegre, com galinhas e ameixeira no quintal, rua de terra e o longo corredor pra tomar banho de chuva.
No refúgio de afetos da memória a casa ainda é sua, meu avó.