A despedida

Carlaprates
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 22, 2022

Ela tinha 15 e ele, 16, quando se conheceram. Maria Adelaide e Lúcio se apaixonaram à primeira vista. Pelo menos é assim que ela costumava contar para quem pudesse se gabar da perfeita história de amor. Lúcio nunca desmentiu. Até a morte!

Maria ficou olhando o corpo posto no caixão. Inerte. Deformado. Bem inchado. Lembrava Lúcio, mas ela precisava se esforçar um pouco para reconhecê-lo. Teve que apelar para as minúcias, para a sobrancelha grossa e bem preta. Para a saliência imperfeita do dedinho indicador da mão. Para as três pintas no queixo, que lhe davam charme em vida.

Ela o olhava tão intensamente, sem ao menos as lágrimas brotarem no rosto. Por que não estava chorando? Haveria alguma razão para não exasperar sua morte? Maria não sabia responder. Só não sentia nada. Definitivamente, seus sentimentos estavam maculados.

Lúcio tinha sido um bom marido. Como grande parte dos homens, machista, escolhia as roupas que a esposa podia vestir. Esperava sem paciência pelo jantar quando chegava da obra. Exigia a roupa lavada, a casa limpa, as crianças criadas. Coisa de macho!

Ela levava a marmita na obra pra ele, na hora do almoço. Lúcio mandava:

- Coloca a sua melhor roupa e se pinta, bem bonita, para trazer minha marmita hoje.

Maria obedecia sem pestanejar. Ser exibida para outros homens como um prêmio ou bibelô do seu homem não lhe causava repulsa. Será que ao vê-lo no caixão a fez restituir essas cenas descabidas? A paga seria a indiferença?

Lembrou-se de súbito do dia em que Lúcio a chamou para passear:

- Vamos sair, Maria, vamos dar uma volta por aí.

Era domingo à tarde. Ela se cabia de tanta alegria. Fazia tanto tempo que eles não batiam pernas na cidade. Será que iriam tomar sorvete? Comer um doce qualquer? Ou seria uma surpresa? Ela ganharia um vestido novo?

Ela estava tanto precisando.

Foram caminhando lado a lado no bairro. Ele parou na loja de materiais de construção. Entrou sem qualquer explicação, comprou o que precisava, e saiu. Foi se encaminhando de volta para o barraco e ela percebeu. Seria só isso! Uma companhia para uma obrigação a duas quadras da sua rotina familiar! Somente, apenas tão somente.

Maria não reclamou. Só pingou os olhos num choro contido. E, agora, nem mesmo uma lágrima. Nem de raiva.

O velório passou e os parentes comentaram que Maria estava tão triste, mas tão triste e apática que nem conseguia chorar.

Nos dias seguintes, foi igual. Mas pior: ela começou a sentir medo. Um pavor que cortava sua espinha porque sentia Lúcio em toda a casa. De repente, a porta abria e o peito apertava:

- É ele, o fantasma de Lúcio. Sabia! Esse homem é teimoso até pra morrer!

Maria suspeitava que isso pudesse acontecer. Já tinha ouvido falar de outras histórias assim, dos homens que apegavam na Terra e ficavam a rondar suas esposas.

Por muitas noites não virava do lado da cama que era dele. Dormia de costas, bem no cantinho direito, com a barriga virada pra parede.

E foi assim por alguns meses. Via Lúcio na cozinha, pegando um leite na geladeira. Sentia Lúcio no banheiro, ligando o chuveiro. Ouvia quando ele chegava do trabalho, limpando as botinas no paninho da entrada.

Mas foi naquela noite em especial, após exatos 4 meses e 22 dias do seu falecimento, que ela ousou virar do lado esquerdo da cama. Maria sentiu a presença dele. A mão de Lúcio a tocou no ombro, gentil, como no primeiro encontro. Lúcia, encantada, se virou para atender ao chamado. Encontrou com ele no leito. Abraçou Lúcio. O corpo inteiro! E assim dormiram juntos, abraçadinhos, coladinhos, até que o dia amanheceu.

Depois deste dia, Maria conta que nunca mais Lúcio foi visto por aquelas bandas!

#02jun22

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