Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readJun 8, 2022

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A ESQUINA DE MINHA RUA

DESAFIO #01JUN22

Por dezessete anos, a casa de número 44 da quadra oito foi o refúgio de nossa família. Ficava em um conjunto residencial que tinha nome de objeto distante: Satélite. E estava realmente bem longe: do centro da cidade e, principalmente, de minhas alegrias.

Um muro verde musgo, com portão de madeira era a fachada. Nele, meu irmão mais novo subia, toda vez que imitava o Homem-Pássaro, personagem de desenho animado da década de 1980. Com uma fralda no pescoço, ele corria como se fosse voar. E escalava o portão que o outro irmão, algumas vezes, fechava de propósito. Queria ver se o menino tinha mesmo poderes de ave.

Na frente da janela do meu quarto, uma árvore de acácia com flores pingo-de-ouro fazia uma cortina amarela linda nos meses de primavera. E onde os beija-flores vinham declarar amor eterno naquele fim de rua.

A casa ficava em uma esquina. E era a última da quadra. Naquele ângulo se encontravam a oitava rua, cheia de buracos e lama ( onde certa vez, meu pai me deixou cair de um passeio inusitado de moto que ele inventou e onde rimos muito), com outra mais larga e sombria. Não havia asfalto. A iluminação era deficiente, o que tornava possível ver estrelas; constelações inteiras. Eram elas que ofereciam brilho às noites em que eu sentava minha meninice quase-mulher, em uma pedra meio desgastada. Ficava bem na ponta da calçada. E cravada na brecha do tempo.

Foi lá que inventei um namorado. Ele passaria todas as noites pela rua que cruzava meu canto escuro, divã de minhas solitudes. Eu o julgava ser meu. Nunca foi. Ele andava por ali, pra ir, justamente, ao encontro de sua amada. Ela morava no conjunto em frente ao meu. Apenas, e por educação talvez, ele acenava para a menina. Era eu, fingindo ser grande.

Eu o espreitava feito um fantasma da esquina. Esticava as pernas curtas, até desaparecerem os silêncios dele no início da rua. A que daria para o encontro que ele tinha ao atravessar minhas ilusões.

Certa vez, meu suposto namorado não apareceu. Não vi mais sua silhueta rasgando a escuridão. Pensei: O namoro acabou! Uma noite rompeu. Outra mais. E a terceira… por fim, não mais o vi. Não namorava mais a garota. E tampouco a mim. E fiquei ali, ora sentada; ora em pé. Um vulto qualquer e achava ser ele correndo e pedindo-me em namoro. Nunca aconteceu! A esquina ficou sem jeito. Emudeceu.

E veio o tempo da mudança. O Satélite fora, enfim, uma longa morada de arrastados anos. Eu orbitara. Era hora de girar em torno de outros espaços. O de número 44 já havia feito sua morada em mim.

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Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.