Foto: Priscilla Du Preez

A “não escolhida”

Oriana Freire
Clube da Escrita Afetuosa

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Vilma era uma das filhas excluídas de uma família de dez herdeiros. Criados por um pai amoroso o qual se esforçou para que vivessem em um lar que comportasse bem uma prole numerosa, sua alegria era ver a casa cheia de crianças. Quanto à mãe, não era possível dizer o mesmo.

Na época em que Vilma era uma adolescente e alguns de seus irmãos entravam na juventude, não se soube ou não se percebeu ao certo, mas havia algo de estranho naquela mãe que praticava atos desproporcionais com alguns filhos. Era perceptível a distinção que fazia, e Vilma era parte dos preteridos, ou seja, os “não escolhidos”, os que não podiam ser amados como os outros. Ela sentia isso e também alguns dos irmãos.

Aquela genitora chegava ao ponto de desejar mal a um filho deliberadamente, e suas atitudes eram tão fora de lugar, que até os filhos bem quistos sofriam pelos que não recebiam o mesmo tratamento. Havia um clima de desconfiança no ar e todos se recusavam a acreditar que no fundo a mãe seria capaz de amar uns e outros não.

Mas um dia o destino decidiu tirar-lhe a dúvida, e numa ocasião em que estavam todos reunidos após uma das refeições, por algum motivo desconhecido, a mãe decidiu fazer o inventário do seu amor: o distribuiu para metade dos filhos, deixando a outra parte sem nada. Nessa hora, todos ficaram chocados, até os que foram favorecidos, pois não entendiam como aquilo seria possível, e Vilma, assim como acontece na natureza, tornava-se oficialmente uma das ovelhas enjeitadas, começando a chorar copiosamente após ouvir tal revelação. Como numa cena inimaginável, os irmãos começaram a consolar uns aos outros e o pai também chocado e desnorteado com o que havia escutado, tentava amenizar as frias palavras da esposa. Entretanto, o estrago havia sido feito e aquela punhalada os deixou feridos para sempre.

Após muitos anos, e sua mãe já havia se despedido dessa vida, Vilma foi buscar respostas para algo que nunca foi capaz de compreender. Descobriu que aquela que a havia colocado no mundo tinha graves problemas psicológicos que nunca foram tratados e que justificavam seus atos. No entanto, mesmo sabendo disso e dizendo ao seu coração, ele não a escutava, pois ansiava por mais do que respostas, desejava preencher uma impreenchível lacuna de amor materno.

Diante desse vazio, sua reação foi contar e recontar inúmeras vezes suas desventuras com a mãe, como se a punhalada a tivesse varado mais profundamente e como se quisesse lembrar a si mesma de que não havia sido merecedora daquele amor. Até hoje não se dá a chance de superar a dor que a maltrata desde menina, apenas se permite viver eternamente assombrada por seus demônios interiores, um mal que a condena a carregar o fardo das palavras pronunciadas por sua mãe naquele fatídico dia, e a revivê-las indefinidamente.

Oriana Freire — Desafio-003/Jun 2022

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Oriana Freire
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Amante da literatura. Viajante das crônicas. Devoradora dos livros. Autora dos blogs: Viajando na Crônica e Viajando e contando