A trilha

Carlaprates
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMay 18, 2022

Ela estava subindo a montanha. Era íngreme e sinuosa. O chão fendido em várias partes dava a impressão de que cairia a qualquer pisada em falso. E ela só sabia de uma coisa: não tinha mais como voltar atrás. Uma vez que se opte por fazer a trilha, só há impulso para seguir adiante. Os caminhos para regressar não são mais possíveis.

Não, ela não estava diante da montanha literalmente. E sim encarando um desafio que começou mediante sua oração diária. Naquele dia, como sempre, ela recitou a reza budista e determinou: “Hoje vou descobrir o que precisa ser revelado. Terei força. Serei forte”!.

Esperou o marido dormir. Ele roncava bem alto quando ela pegou o celular. Ela esperou um pouco para ter certeza. Sabia da fenda que iria se abrir. Tinha consciência que neste abismo escuro não teria nada que pudesse acolher. Nem quem pudesse. Ela estaria ali, sozinha.

Foi neste instante que começou a subida. Lembrou da senha do celular que a filha, intuitivamente ou com uma intenção corajosa, revelou no dia de Natal. Foi direto para o whatsapp e, entre as primeiras mensagens, estavam as conversas trocadas, os áudios, as imagens da traição.

Conforme foi se preenchendo daquilo, sentiu vontade de descer. De desistir da montanha. Era tarde! A jornada tinha iniciado. Não teria como interrompê-la.

Tinha decidido com ela mesma não fazer escândalo. Preservar a filha.

Não conseguiu.

Acordou o marido aos berros. Gritou para sair de casa, para deixar sua vida. Ele acordou assustado e tentou desmentir. Ela tinha provas.

A filha ouvindo tudo. Tudo que revelava o desespero que corroía os sonhos da mãe. O desespero que coroava as tentativas do pai de remendar o desejo que lhe sucumbiu.

A casa ficou cheia de gritos e choros. Foi assim a madrugada inteira até o dia amanhecer. Foi assim por alguns meses. Só que os gritos cessaram, mas ainda tem o choro. E o silêncio, uma paz a que não estavam mais habituadas, tomou conta do espaço. Isto era muito bom!

Aos poucos, os dois iam tentando ajustar as coisas. Ela ainda ecoava separar e ele, querendo se conectar.

Já não estavam mais morando juntos. Cada um em seu canto. Talvez por isso as brigas silenciaram. E também pelas orações dela. Desde o sopé da montanha, já emanava nas preces: diálogo, respeito, relações saudáveis.

A infidelidade foi a gota d’água bem volumosa de uma relação já corrompida por desentendimentos, conflitos; pela violência dele. A que ele trazia do relacionamento dos pais.

Não era só responsabilidade dele, de certo. Também tinha o aceite dela. Sem coragem e força interna para dizer: “BASTA”!

Mas tudo bem! Tudo bem! Ela precisa se empoderar, fortalecer. Inspirar a potência que existe mesmo diante da mãe submissa, de todas as mulheres nesta cultura patriarcal. E ele precisa expelir, jorrar o choro. Expirar o patriarca opressor que lhe serviu de guia até ali.

Ela ainda quer separar. Dele, da cultura machista. E ele quer aproximar. Dela e das relações de amor que se respeitam como iguais.

Ambos ainda estão no meio da montanha. Com uma única certeza: lá, bem no alto, a vista será a mais bonita de todas a que a janela da alma já adentrou!

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