Adoro sair. Amo voltar.

Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa
9 min readApr 24, 2022

Desafio 02abr2022 — Clube da Escrita

fonte: pixabay.com

Nasci numa casa cheia. Minha mãe teve seis filhos, todos de uma só vez. Era um empurra-empurra para conseguir comer um pouquinho. Nem sabia quem era meu pai. Morávamos com quatro adultos. Era tudo muito barulhento. Ficávamos ali dia e noite. Praticamente, não falavam comigo. Tão cheio. Tão vazio.

Um dia me colocaram no carro. Oba! Vamos passear. Parecia que estávamos longe de casa; eu já estava com fome e vontade de fazer xixi. O carro para. A porta se abre e sai num pulo. A porta se fecha. O carro avança. Some. Olhei em volta. Era uma rua quieta. Casas dos dois lados, árvores. Fui andando vagarosamente. Tentando sentir algum cheiro conhecido. Nada. Xixi já fiz ali mesmo. OK. E a fome? O que ia fazer? Não tinha a menor ideia. Apertei o passo, tentando achar alguma forma de acalmar minha barriguinha que roncava. Dobra daqui; dobra dali. Caramba! Que susto. Um cão enorme grita comigo de dentro de um portão. Parecia querer quebrar tudo para me pegar. Caso aquele portão se abrisse eu estava lascada. Epa! Tem uma casa aberta ali na frente. Sinto cheiro de comida. Um entre e sai de gente. Paro na porta. Oi, au-au, alguém fala olhando para mim. Será esse meu nome? Estranho. Acho que vou entrar também, posso comer alguma coisa aqui. Ai, ai, ai… algo duro bate nas minhas costas. Me abaixo e saio porta afora. Alguém grita — sua desgraçada. Será que me conhecem? É assim que me chamavam lá em casa. Estava ficando escuro e o sono batendo forte. Resolvi ficar perto de umas plantas na calçada. Um olho fechado, outro aberto, vigilante. Cochilei, intercalado de sobressaltos. A barriga vazia.

O dia clareou. O que vou fazer? Sem saber para onde ir. Nem tenho como voltar. Não sei onde estou. Avisto um portão aberto. Um quintal grande. Um cão vem em minha direção. Paraliso. Ele me cheira. Cheiro ele. Tudo bem. Segue para o fundo onde tem uma casa. Vou atrás. É recebido por uma mulher que vem lhe servir comida. Ei, quem é você? Me oferece comida também. Ufa! Estou salva, finalmente. Comemos tudo. Saciada, fico por ali, descansando da noite difícil. Meu amigo vê um homem se aproximando, corre e é recebido com risadas e carinhos. Quando me percebe, fecha a cara e pergunta — quem é essa? Mais uma boca para comer. Você me arruma cada encrenca. Fico perto, intimidada. Não entendi bem. Só senti que não era bem recebida. Mas, tinha comida. Era o que precisava. Os dias se seguiram entre correr pelo quintal, fugir pelo portão, voltar, comer, fugir, ficar pela calçada, correr atrás de umas coisas barulhentas de duas rodas. Tinha umas que não faziam tanto barulho. Adorava correr atrás delas. Quase sempre eu apanhava por causa disso. Doía! Todos os dias o homem chegava e fazia a maior bagunça com meu amigo. Eu olhava de longe. Ele não me chamava para brincar. Às vezes, tentava entrar na brincadeira, mas ele me mandava embora com as mãos ou com os pés. E gritava pelo novo nome que me deu — sai safada. Será que isso era uma brincadeira e eu não sabia? Passou tanto tempo que nem sei. Dias. Noites. Frio. Calor. Chuva. Sol. Minha vida era assim — correr, comer, apanhar, dormir, correr, apanhar, dormir…

Aquele dia parecia especial. Eu e meu amigo brincamos muito. Saímos um pouco de perto de casa. Conhecemos outros amigos que passaram por lá e fomos juntos dar uma volta. Estava cansada, mas feliz. Era tarde quando o homem chegou. Estava estranho, quase caiu ao entrar no portão. Andava em zigue-zague pelo quintal em direção à casa. Meu amigo correu para ele e foi rispidamente empurrado. Tentou novamente se aproximar e o homem começou a bater-lhe com as mãos e pés. Fiquei furiosa. Tentei ajudá-lo e enfrentei o homem. Fiz várias investidas até que ele me golpeou forte com o pé. Fui arremessada para longe. Caí sentindo muita dor na perna e soltei um grito de pavor. Não conseguia me levantar. Meu amigo correu para me socorrer e o homem aproveitou para entrar na casa. Com dificuldade levantei e me encolhi num canto até adormecer. Meu amigo ao meu lado. Quando amanheceu, mal conseguia andar, resolvi ir embora. O portão estava entreaberto. Meu amigo me seguiu algumas quadras. Estava calor. Estávamos com sede e a fome dava sinais. Ele resolve voltar. Lá tinha água e comida, tentou me convencer. Eu queria mais. Tive medo, mas segui em frente. Relutante, meu amigo retorna. Eu o entendo. Mas segui. Sem destino certo. Só segui.

Ficava perambulando de calçada em calçada, portão em portão. Sai sua desgraçada! Não entendo como alguns sabem meu nome. Outros colocavam comida. Quando chovia ficava complicado. Fui descobrindo um lugar ou outro para me proteger. Estava cochilando quando se aproximou uma moça. Fez carinho na minha cabeça. Ah, que delícia de cafuné. Coisinha fofa ela me chamou. Levantei-me sem saber se corria perigo. Nunca se sabe! Me afastei um pouco. Minha perna ainda doía. Andava mancando desde aquele dia terrível. Oh, coitadinha, está com a perna machucada. Pegou-me no colo. Não resisti a tanto chamego. Andamos assim, eu e ela, agarradinhas. Nem sei quanto tempo. Perdi a noção até. Chegamos numa casa grande, diferente das que eu havia estado. Subimos escadas e entramos numa casa bem pequenina. Largou-me no chão, serviu-me água. Vem. Sobe aqui. Obedeci. Uau que macio aquele lugar. Já volto! Ela saiu, trancando a porta. Pouco depois volta e coloca no meu pescoço uma coleira. Já vi vários amigos usando isso. Aí, aí. Começou a me puxar. Vamos, vamos, olha a caminha que comprei para você. Comprei comida. Ui, coloca um negócio muito estranho, duro e sem graça num pote. Credo! É isso que essa moça come? Horrível. Não quero. Me puxa, apertando meu pescoço. Ei, não quero assim. Socorro! Ela não me ouve. Me obriga a entrar num lugar frio, cheio de água que cai de cima. Me molha toda e começa a me esfregar. Ai meus olhos, não consigo enxergar. Quero sair daqui. Me enrola numa toalha e me seca. Ufa! Quando penso que a tortura acabou, ela liga um treco barulhento e mira na minha direção. Socorro! Sai um vento quente deste treco. Ela vai me queimar. Socorro! Nunca passei por isso. Onde fui me meter. Porque deixei ela me pegar. Como sou boba. Não aprendo.

Não sei quanto tempo se passou. Agora só o que via era aquelas paredes. Aquela coisa apertando meu pescoço. Aquela comida horrorosa. Que saudade das comidinhas na calçada. Que saudade de correr pela rua. Que saudade da chuva. Nunca pensei que ia dizer isso. Por onde será que está meu amigo? Fico a maior parte do tempo sozinha. A moça sai e só volta quando está escuro. Quando ela chega tento brincar. Pulo. Pulo. Ela sorri, mas sempre tem muitas coisas para fazer. Anda para lá e pra cá. Come. Descobri que ela não come aquela coisa que me dá. E pior, não me dá o que ela come. Quando se senta, fica debruçada na mesa, sei lá fazendo o que. Tento chamar a atenção. Para fofa, estou ocupada. Não sei para que ela me trouxe para este lugar. Imaginei que quem usava estas coleiras e tinha suas casinhas eram muito felizes. Agora descobri que estava errada.

Dias de tristeza se seguiram. Não tinha mais esperança. Numa manhã, por uns instantes, a porta ficou aberta sem vigilância. É minha chance. Sai correndo pelas escadas e ganhei a rua. Corro até perder o fôlego. Não sei nem para onde. Só queria ir para longe dali. Encontrei um mato e me escondi. Fiquei ali até escurecer e garantir que ninguém me acharia. Quando clareou, corri mais um tanto. Não me importava com fome ou sede. E assim fiz algumas vezes. A moça não veio atrás de mim. Poxa! Nem se importou que fui embora. Melhor assim. Precisava dar um jeito de tirar aquela coleira. Forcei, forcei num galho até conseguir passar minha cabeça. Quase a arranquei. Que dor! Ufa! Consegui. Segui andando.

Longe, vejo uma obra. Tem gente por todo lado. Um homem assobia. Acho que estava me chamando. Meio ressabiada, me aproximo. Hum, senti um cheirinho de comida. Ele me entrega um pedaço de algo muito gostoso. Nem acreditei. Mais um pedaço, mais um, mais um. Fiquei por ali. Durante o dia era um entra e sai de gente, carros e caminhões. Eu ficava do outro lado da calçada, acompanhando tudo. Meu novo amigo me chamava sempre que a comida chegava. À noite, só ele permanecia lá. Costumava ficar sentado em frente a obra e eu ao seu lado. Era eu e ele, juntos. Dias e noites. Colocaram os portões. Altos, pretos e bonitos. Meu amigo os fechou. Deixou um pote de comida, me fez um afago na cabeça. Entrou num carro e se foi. Não voltou mais.

Era uma noite fria. Eu estava só. Sem saber aonde ir. Fiquei enroscada, tentando me aquecer, perto de um arbusto na calçada. Que noite! Durante o dia, fui dar uma volta pelas redondezas. Não sabia mais nem o que tinha por perto. Pensei que não precisava mais saber. Acreditei que agora estava tudo certo. Escureceu. Ventava e o frio aumentou. O que eu temia aconteceu — começou a chover. Não achava lugar para me abrigar. Já estava toda molhada. Congelada. Tremendo. Me aproximei de uma casa em que o vento parecia não bater tão forte. Nisso, um carro se aproxima, o portão se abre. O carro entra. Fico espiando para ver quem está lá. Sai um homem. Sim, eu o conheço. Já o vi passar lá na frente da minha casa. Quero dizer, da minha ex casa. Fico parada. Olhando. Tremendo. Ele me reconhece. Me chama. Quer que eu entre. Vou me aproximando. Um misto de receio e bênção toma conta de meu corpo congelado. Ele chama uma mulher. Ela corre e busca toalhas. Se abaixou para me abraçar. Tremo muito. Ela me seca. Olho seus olhos. Ela retribui. Eles falam entre si. Sentem pena. O homem prepara uma caminha de caixa de papelão. Colocam na garagem. Embaixo da churrasqueira. Me cobrem. Ficam ali comigo até eu me esquentar. Vou me acalmando e adormeço. Acordo durante a noite. Eles não estão ali. O portão está fechado. O carro está lá. Devem estar lá dentro da casa. Eu estou ali. Segura. Quentinha.

Amanhece. Ganho comidinha e água. A mulher me afaga no rosto com as duas mãos — meu amor, você está melhor agora? Te abandonaram no frio? Tadinha. As mãos dela eram tão macias e quentinhas. Eu poderia ficar assim o dia todo. Ela perguntou se eu não queria fazer xixi. Abriu o portão. Estava querendo ir mesmo. Mas estava com medo. Será que vou poder voltar? Fui. Voltei. Comi, tomei água. Saí. Fiquei na calçada. Gosto de ficar lá observando. Preparam uma caminha macia. Ganhei um cobertor bem quentinho.

Sabe, aqui é bem divertido. Vem cá com a mamãe. Ah, esse é seu nome. Eu corro. Pulo. Me esfrego no chão. Ela me faz cosquinhas na barriga. Sei quando a mamãe acorda. Sinto seus movimentos. Me espreguiço toda. Ela abre a janela. Corro em direção ao portão e ele se abre, magicamente. Corro para fazer xixi. Seguro a noite toda. Não faço no quintal. Não quero lhe dar trabalho. Sem hora para voltar, aproveito para passear. Olhar os arredores, a vizinhança, os amigos que já fiz. Às vezes volto logo, se está frio, ou muito sol, se estou cansada… às vezes esqueço do tempo, me distraio, corro, cheiro tudo. Quando chego, sempre o portão se abre. Sou recebida com risos, carinho. Comida não falta. Quase sempre tem aquelas coisinhas duras. Até que estas são gostosas. Mas mamãe volta e meia me dá um ossinho. Ela sabe que adoro.

Quando mamãe sai ela diz — já volto OK?! Se quiser, fico no quintal. Se não, fico na rua. Agora eu que escolho. Adoro sair. Amo voltar. Ela volta. Mamãe, mamãe, você voltou! Corro em sua direção e pulo, pulo para lhe abraçar. Não sei se saberia mais viver feliz sem você por perto. Ah mamãe, como é bom vê-la, sentir seu cheirinho. É único, sabia? E sua mão? M a m ã e… sua mão é a mais fofa do mundo. Sinto um quentinho no coração, uma calma, uma vontade de que o tempo pare, só para você continuar a fazer seu carinho. Para lá e pra cá, sua mão desliza no meu corpo, brinca de apertar minhas orelhas. Eu fecho os olhos, me arrepio de emoção. Vez ou outra abro os olhos para lhe espiar. E está lá você, bem pertinho de mim, me olhando docemente. Suspiro de contentamento e você sorri. Você sempre entende o que quero dizer. Nem preciso saber falar sua língua.

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Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa

Aprendiz de escritora - @sousoniamarques Compartilhando experiências - formada em Adm Florianópolis/SC