BAÚ DOS SONHOS

Jose Angelo Trindade Resende
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readFeb 15, 2021

Quando Ana casou-se, levou consigo um baú de madeira, aonde carregava o seu enxoval e também os seus sonhos. Era um baú encantador: de um bom tamanho, branco, do tom do vestido que ela usara no dia anterior. Tão virgem quanto ela no dia em que chegou à nova casa.

Instalado ao lado direito da cama do casal, o baú foi testemunha dos quarenta anos em que Ana passou casada. Presenciou sorrisos, lágrimas e sussurros.

Desgastou-se com o tempo, como tudo.

O enxoval que ele guardara um dia foi renovado várias vezes. Isso não aconteceu com os sonhos que também carregou. A rotina da vida ofuscou o brilho, e o casamento de sua dona acabou.

O tom branco do baú, depois de tanto tempo, encontrava-se amarelado, tal qual o velho vestido. Sua pintura também estava desfeita, feito rugas de tinta a óleo. Ana também estava enrugada. Envelheceram juntos.

Traziam em comum a rigidez, vinda da madeira, e a força restauradora, presente na mulher. Era tudo o que lhes sobrara, e era muito.

Ana reformou o seu baú. Devolveu-lhe a cor natural e, a partir daí, passou a usá-lo como um relicário. Colocaria ali suas lembranças e seus projetos, apenas os indispensáveis à sua continuidade, fosse sua primeira boneca, o retrato do neto ou o projeto novo do jardim.

Retocou sua maquiagem e, em uma tarde de verão, retirou do fundo do baú um LP. Queria dançar. Colocou o disco para rodar em sua vitrola. Era de um grupo de músicos mineiros que insistiam em cantar que “os sonhos não envelhecem”, e ela insistiu em dançar. Driblou as dores reumáticas e dançou ao som da bela canção.

Ela só queria envelhecer sonhando. Foi aí que percebeu que rodava sua saia, dançando e comandando os quatro ventos no baú do mundo.

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