Baús e histórias

Marilia Paiva
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMar 30, 2022

Os olhares eram atentos, as expressões sérias e de curiosidade quando se abriu o baú. De lá saíram caixas e mais caixas de fotografias antigas que minha tia resolveu revelar para mostrar aos sobrinhos num dia chuvoso.

A ideia dela era educativa: mostrar quem foram os primeiros moradores daquela casa centenária, onde nós, meninos e meninas de idades variadas, passávamos as férias.

Com um ar professoral, tirou daquela caixa empoeirada a foto do Manoel Ferreira Carneiro, dizendo que ele tinha a alcunha de Jangada. Olhamos uns para os outros sem entender, até que um mais velho, para aparecer o sabichão, perguntou o motivo daquele apelido?

Outra foto foi mostrada, agora o tal montado num cavalo, ou seria um burro, repleto de apetrechos jogados em seu lombo e ao seu lado o garboso senhor com um casaco longo até o pé.

Muito emocionada, a tia idosa, ia nos contando que com aquele burro carregado de mercadorias nosso antepassado, um português, chegou ao Brasil vendendo o que trazia da terra longínqua. Soletrando a palavra explicou a nós, que ele era um, mas-ca-te. E enfatizou que não era o dono do que comercializava, mas apenas um empregado, que depois acertava as contas com seu patrão ao retornar.

Um dia, no meio do caminho, andando por rios, com seu burro, e sua jangada encontrou um homem que sem dinheiro para comprar um capote trocou as terras que tinha pelo casaco, provavelmente aquele que nosso tio usava na foto.

Ao retornar à Portugal para acertar o que vendeu, entusiasmado contou que tinha conseguido uma enorme gleba. O velho, dono do casaco e de todas as outras mercadorias, ficou foi muito zangado não querendo saber de nenhum pedaço de propriedade no Brasil, aquele País de índios, malária e muitas doenças.

Então coube ao nosso parente, dono daquele bigode, que agora mostrava a tia em outra foto, voltar para Minas Gerais e tomar posse do que era seu.

Uma casa de fazenda com um sino em seu alpendre foi a primeira fazenda construída por ele, disse ela nos mostrando a fotografia onde aparecia uma senhora sentada em uma cadeira de balanço segurando um bebe no colo, ao lado do imponente senhor agora de barba.

Ficamos sabendo que foi o primeiro filho de onze. Uma família grande, como era o costume. Aquele bebezinho era nosso tataravô que tinha reformado a fazenda antiga dando origem aquela que nós estávamos.

Sua mãe, a senhora com cara amarrada e umas olheiras enormes tinha fama de Santa. Com fervor, nos contou que qualquer coisa que precisássemos achar era só pedir para vovó Candinha que ela encontrava.

Uma santinha que na época das vacas magras, ocasião em que teve um incêndio devastador na fazenda, não deixou os pobres escravos sem alimento e nem mesmo as famílias humildes. Roubava os mantimentos do próprio marido e levava para dar aos necessitados.

E completou sua história, mostrando a foto de um cômodo todo queimado e apenas ostentando incólume a imagem de Santo Antônio.

Era tão devota que no incêndio que ocorreu na fazenda, todos os quartos foram destruídos e o único que manteve de pé, foi a capela, com a imagem sem nenhum chamusco. Milagre que a Vovó Candinha tratou de propagar pela cidade e dizendo que era um sinal para continuar dando pão e alimento para os seus pobres assim como fazia o Santinho.

E com um ar dramático apontou para a menina de cabelos encaracolados, meio vesga, com uma carinha sapeca. Era uma das filhas do casal, que ao tomar banho na cachoeira que dava nome a Fazenda, por uma fatalidade, caiu batendo a cabeça numa pedra vindo a falecer.

E para nosso horror e espanto revelou que tinha sido enterrada no porão da fazenda.

As fotos foram guardadas novamente em suas caixas empoeiradas dentro do velho baú e nós crianças enviadas para nossos quartos. Ela não conseguiu guardar no velho baú o medo da priminha vesga com cara travessa.

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