Bastidora
Vó Salomé fazia suas próprias roupas. Tinha há anos um único molde recortado em cartolina que servia de base para seu modelo infalível. Um retângulo de tecido era suficiente. Com destreza e muitos alfinetes, Salomé traçava duas curvas longitudinais que ligavam diretamente os ombros aos joelhos, já com os espaços destinados à montagem das mangas e da gola.Vê-la trabalhar nas roupas era algo mágico: panos estendidos, tesouras poderosas e retalhos esvoaçantes criavam uma dança de cores e barulhos. Um balé hábil que milimetricamente resultava em uma nova face para Vó Salomé. Mais uma versão do seu já famoso e icônico bastido: algo entre uma bata e um vestido. Vó Salu mantinha sempre quatro bastidos disponíveis, confeccionados especificamente para determinados usos.
A primeira roupa da manhã de Vó Salomé era o uniforme da roça. Este estragava rápido, com nódoas de palma ou óleo de côco e azeitona. A bainha abaixo dos joelhos ficava manchada de barro e descosturava em pouco tempo. Para economizar um pouco mais, Vó Salomé fazia uma nova versão do bastido da roça a cada dois meses, normalmente de algodão tingido de uma cor só. Vó Salomé levantava cedo e muito prontamente já se prestava ao trabalho, com o bastido do bimestre. Assim que todos os filhos estavam alimentados e encaminhados, Salomé saía serena pela porta dos fundos contrastando seu azul-lavanda ou verde-água com o barro vermelho do chão. Os reforços nos joelhos, cotovelos e quadris voltavam desgastados para casa na hora do almoço, como testemunhas orgulhosas do árduo trabalho. Retalhados pelas plantas e pela terra como os dedos de vovó, desbotados pelo sol e pelo suor como sua pele, minguados pelo tempo como sua alma.
Quando o céu ficava laranja, Vó Salomé surgia do seu banho de cuia e cheiro com o bastido de casa. Igual em corte e medidas ao anterior, mas inconfundível na exuberância da chita. À mulher de mãos calejadas, rota e suja que há pouco entrara em casa, sucedia esta renovada figura, perfumada como dama-da-noite e colorida sem igual. Lavanda, alfazema e camomila — nunca esquecerei. Nesta cor e sob um sorriso indelével, Salomé acolhia os filhos mais novos e os filhos dos filhos mais velhos. Todos nascidos e crescidos em meio às suas flores e cores. Vó Salu fazia uma nova roupa de casa por ano ou quando nascia algum filho ou neto. Dizia que um bebê era uma renovação da vida, um momento dotado de uma graça e um jeito únicos que só deus e as mulheres conhecem. Foram muitas renovações neste bastido, todos agraciados com seu colo, vasto como as pétalas das enormes papoulas no tecido.
Aos domingos e dias santos Vó Salomé cobria-se de sua faceta mais sóbria: o bastido negro da sua espiritualidade. Ao molde consagrado eram adicionadas faixas de crochê nas mangas e na bainha, além de uma gola larga como a de um paletó antigo e botões finos, comprados na capital há muitos anos. Vimos vó Salomé refazer este modelo poucas vezes. O primeiro, mais simples, foi levado à míngua pela própria Salomé, quando perdeu sua filha mais velha para a tuberculose. Vovó deixou-se no bastido do velório à missa de sétimo dia. Naquela noite voltou para casa e, tesoura à mão, reduziu o tecido a centenas de pequenos retalhos de pano preto. Numerosos, mas insuficientes para enxugar suas lágrimas. Costurou seu luto demoradamente em um novo bastido preto, com o qual retornou à igreja meses depois. Anos depois foi a vez de Vô Haroldo. Morreu de cirrose e teimosia. Desta vez Vó Salomé voltou do enterro diretamente para o quintal. Lá deixou-se nua à vista dos céus enquanto a ver arder o bastido numa fogueira. Não vi, mas dizem que o fogo subiu escuro como a noite e que os panos uivavam de dor e estalavam de alívio.
Passado um tempo, aconteceu de Vó Salomé decidir que seu tempo já tinha passado. Assim, vestiu-se de seda e lua cheia e deitou-se em seus aromas de flor. Inspirada pela solidão da noite, voou livre em seu sublime bastido noturno e caminhou pelo céu com os ombros e os joelhos à mostra, ofuscando as estrelas e pintando o firmamento de lilás. Desprendeu-se da terra que sempre semeou e brilhou como o sol que sempre a castigou. Quem a viu naquela noite a transgredir a abóbada celeste jura até hoje que Vó Salu sorria plenamente, com a alegria de quem enfim governa a todos os cantos de si.