Brincadeira de velhice

Natália Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readJul 9, 2021

Foi logo depois de um almoço de domingo. Ela me chamou de canto, com cara de sarcasmo, risinho no canto da boca e disse “olha só as pernas daquela ali, mais parecem duas varetas”. E caiu no riso.

Ela, com seus 94 anos, é a minha avó. As pernas de vareta, eram de minha tia, a filha que ela reconhecia hora sim, hora não, por causa do Alzheimer. Já o hábito de fazer piadas com a aparência alheia, era algo cada vez mais frequente nos últimos tempos. Cada hora a velhinha ria da careca de um tio, da barriga do genro e por aí vai.

Logo ela, que por uma vida toda foi privada do direito de brincar. A começar por uma infância pobre, na qual além de não ter brinquedos, foi obrigada a se dedicar a serviços domésticos. Some isso a uma criação rígida, com o machismo acirrado pela época e pela cidade afastada do interior, o que não lhe permitiu frequentar a escola porque “não era coisa de mulher”.

E assim, analfabeta, com destino escolhido pelo pai, casou-se com um viúvo que tinha nada menos que sete filhos para criar. E desde então, sua vida se tornou um eterno servir aos outros e nunca a si mesma.

Sem espaço para cultivar seu mundo interno e descobrir os prazeres na vida, constituiu a imagem pela qual todos nós a conhecíamos: uma mulher exigente, rígida e muito séria. Poucos eram os que conseguiam arrancar-lhe um sorriso — com exceção de meu pai e suas eternas palhaçadas.

E o que a vida inteira lhe privara, a velhice lhe exigia de bandeja. Em uma vingança traquina contra tudo e contra todos, virou uma espécie de criança rebelde, aquela que senta no fundão da classe e fica caçoando de todos os colegas. Antes tarde do que nunca, agora, ela pode ao menos brincar.

--

--

Natália Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa

Da tentativa de achar a palavra certa e nunca encontrar, nascem meus textos | insta: @nataliafig