Cabo de guerra com o tempo

Barbara Fonseca
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMay 24, 2022

Nasci e cresci numa cidade sem semáforos, elevador ou escada rolante. Aliás, Caeté, incrustada nas serras da região metropolitana de Belo Horizonte, talvez seja uma das últimas cidades do mundo sem semáforos até hoje.

A nossa rua não tinha saída. Ficava num bairro tranquilo, de casas térreas com alpendres e muros baixos. Havia muitas crianças, como eu e meu irmão. Crianças da própria vizinhança ou de outros cantos que sempre vinham visitar os avós que ali moravam. Crianças que, todos os dias, ocupavam as ruas com suas brincadeiras.

A minha preferida era esconde-esconde, por toda a emoção que provocava na gente. A adrenalina de buscar um esconderijo, enquanto o colega contava até cem com os olhos tapados, apoiado sobre os braços no poste da esquina. O medo de ser flagrado. Ou, pior, de ser surpreendido pelo dono de alguma casa onde, vez ou outra, a gente entrava para se esconder.

Teve uma vez de nos metermos debaixo de um carro estacionado na garagem de uma casa da rua de baixo. Pensávamos que os moradores não estavam, mas, de repente, um homem saiu na varanda e por lá ficou, encostado no carro, de conversa com outro que passava pela rua.

Minha aflição foi tamanha que explodiu num ataque de risos. Mas o pior nem foi isso. Quanto mais eu tapava a boca para abafar a risada, mais vontade me dava de rir e mais força eu fazia para controlar, mais força, mais força até que a tragédia aconteceu: me mijei toda. Por sorte, o senhor entrou para casa antes de perceber a confusão que se formava debaixo de seu nariz.

Histórias assim faziam parte de nosso cotidiano e, cada vez que eram narradas, se transformavam em verdadeiras epopeias sob o nosso olhar infantil. Todos os dias uma nova anedota, uma aventura diferente. Mas algumas coisas se repetiam em cada conto. Uma, sem dúvidas, era a minha dificuldade para controlar o riso (e, como consequência, o xixi).

E outra que não falha em minhas lembranças é o cheiro de comida que tomava conta da vizinhança no fim de tarde, quando o dia e a noite se encontravam num céu prateado. O céu das seis, hora em que os alto-falantes da igreja entoavam a melodia melancólica da Ave-maria, também replicada nos aparelhos de rádio de toda a cidade.

Naquele momento, a criançada fazia o caminho de volta à casa, ainda que contrariada. Calçávamos os chinelos e dizíamos adeus uns aos outros como se fosse durar uma eternidade até o próximo encontro. Inevitavelmente, a mãe de algum menino perderia a paciência e sairia com a cabeça no portão para gritar o nome do coitado. Fulaaaaano! O resto gargalhava e lhe apontava o dedo.

Ao chegarmos da rua, suados e despenteados, eu e meu irmão encontrávamos a casa adornada com um delicioso perfume de alho. Era o refogado para o arroz branco, que minha mãe nos servia de janta no velho prato duralex. Na hora de comer, sobre aquele montinho de grãos brancos, ela desenhava uma linha dourada com azeite de oliva, um luxo para a época. O arroz poderia ser coroado com um ovo frito ou, como eu mais gostava, com tomate picadinho. Era um deleite levar o prato diretamente à boca para saborear o caldinho que se formava no fundo.

Quase três décadas me separam dos acontecimentos narrados nestas linhas. A rua, a meninada, o cheiro de alho…Escreve-las é como transformar o tempo numa corda. A cada palavra digitada, dou um puxão forte para o meu lado, encurtando, assim, a distância do agora com aqueles dias de leveza e simplicidade.

Volto a ser uma criança descalça, suada e despenteada, mijada de tanto rir e com os olhinhos fechados de prazer ao comer um prato de arroz. Volto a sentir o tempo como uma corda frouxa, cujas pontas, diferente de hoje, meus olhos nunca podiam alcançar.

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