CAIXINHA DE AFETO

Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readApr 3, 2022

#04MAR22

Eu somava uns 12 anos quando me vi diante daquela caixinha. Pequena, quadrada, com tom dourado envelhecido e uma imagem cravada na tampa. Cabia na palma da mão. Minha avó paterna, Ana — de quem herdei o primeiro nome -, foi quem me presenteou com o objeto. Vovó tinha olhos afundados em olheiras, escuros, taciturnos, mas transbordados em afeto. De lábios estreitos, pele morena clara, braços e pernas finos e voz mansa. Nunca a vi falar alto ou grosseiramente. Suponho que dentro de si, pelas coisas que eu escutava sobre sua vida, as mágoas e angústias emitiam sons estridentes e ensurdecedores. Foram eles que a levaram um dia. E eu fiquei com a caixinha.

A surpresa ao abrir a tampinha era que, ao enroscar uma espécie de manivela, começava a tocar uma música delicada. Um clássico, talvez. E era como se algum pianista minúsculo estivesse lá dentro, dedilhando o rolinho cheio de arestas de onde saía o som. Acho que vovó sabia que eu queria muito um presente assim. Ainda que aquela não tivesse uma bailarina rodopiando sobre os pontinhas dos pés; tampouco espelho ou espaço pra joias e coisas afins. Mas tinha o principal: A melodia!

A verdade é que era um chaveiro em forma de caixinha de música; com espaço pra colocar uma foto no verso da tampa. Eu podia pendurar na mochila da escola e fazer o pianista invisível tocar até cansar. Ou até a corda parar.

Hoje fico imaginando onde vovó teria comprado aquele artefato tão especial. E de como o escolheu com delicadeza e carinho pra presentear a única neta que era eu, até então. Tinha, pois, contato com crianças onde trabalhava; disso eu sei. Talvez isso a aproximasse mais de mim, em uma tentativa de ter e dar amor assim, sem pressões ou interesses. E detê-lo ali, dentro daquela caixinha.

Não raras vezes, nos deparamos com delicadezas que possuem um peso solene e único dentro de nós. São elas que nos fazem escutar sons e sair cantarolando inadvertidamente. Elas vêm no abraço apertado, na risada frouxa com os amigos, na criança que nos puxa pela mão pra brincarmos com ela. Ou em forma de caixinha de música.

Não lembro se agradeci minha ‘vó’ pelo presente. Mas hoje é uma memória que toca fundo dentro de mim. Vovó, a de olhar triste e afável, foi se calando, deixando de emitir palavras. Apenas o som frio de aparelhos hospitalares emitia e transmitia alguma emoção que por ventura ela tivesse. Sem ela, algumas notas foram subtraídas; esquecidas. Fiquei com a caixinha. E vovó Ana, pra sempre, tocou a alma da criança silenciosa que fui um dia.

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Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.