Caleidoscópio de sensações
004 abr/22
- Buongiorno, Dona Hélida!
- Buongiorno, filho da puta!
- Opa, a senhora está se chamando de puta, então?
E caímos, ela e eu, na gargalhada. Aos 93 anos, minha mãe perdeu totalmente o freio. Seus dias são recheados de palavrões e de tudo o que lhe vem à mente.
O “alemão” começou a visitá-la, sorrateiramente. Primeiro, esquecia a chama do fogão acesa. Depois, passou a ter uns “brancos”, que chamávamos de apagões. Quando estava conversando, de repente, a cena congelava: ela parava e olhava o vazio por alguns segundos. Em seguida, voltava ao normal, sem continuar o que estava dizendo.
Mais tarde, começou a repetir as mesmas frases durante o dia inteiro:
- Sabia que o Dr Fontão disse que não preciso mais usar sutiã? Eu não quero mais ter filhos.
Como ela é canhota, tinha grande afinidade com pessoas semelhantes. Uma noite, ao assistir à TV, na sala, ela disse:
- Sabia que a Fátima Bernardes saiu do Jornal Nacional porque é canhota?
A falta de lógica no seu discurso era superlativa e, às vezes, hilária. Ambos, ela e o marido, foram diagnosticados com Doença de Alzheimer, para grande desespero de nós, os quatro filhos. Nosso sofrimento foi aumentando e a sensação de impotência perante uma doença incurável, também. Com o auxílio de cuidadoras, amenizamos o trabalho, mas não a nossa dor. Hoje, nos deparamos com a nossa nova mãe, uma pessoa que sempre nos pergunta:
- Quem é você?
Seguidamente, fica muito irritada, quando mexem com ela. Já não quer que as cuidadoras lhe deem banho, ela que sempre foi superlimpinha:
- Pare! Me larga, cadela! Puta! Puta! Puta! Demônio dos infernos!
Dona Hélida, que nunca falava palavrão, que sempre foi contida, que engolia muitos “sapos” e que não retrucava quando brigavam com ela, agora está cada dia com a língua mais solta e sem filtro. Ficou viúva em março de 2022, após 72 anos de casamento. Não soube expressar o luto, pois já não consegue mais elaborar o pensamento e nem dizer o que sente, mas com certeza, em algum lugar do seu íntimo, a chama do amor e da saudade do marido ainda permanece acesa. A atual situação lhe permite falar o que bem entende, sem preocupação com a autocrítica, que já não existe mais.
- Eu amo a senhora, mãezinha!
- E eu com isso?
Fiquei chocada com a resposta. Num outro dia, eu lhe disse:
- Eu amo a senhora, mãezinha!
- Eu também!
Fiquei surpresa com a resposta. Dizem que a memória afetiva não se apaga com essa doença. Então, procuro demonstrar meu afeto por ela, sempre que posso, dando-lhe atenção e um beijo de boa noite. No entanto, a mudança repentina de humor, o discurso caótico e a agressividade dela provocam em mim um verdadeiro caleidoscópio de sensações. Alegria. Tristeza. Raiva. Ódio. Culpa. Impaciência. Desânimo. Amor. Saudade. Sou consciente de todos esses sentimentos misturados, mas não tenho vergonha de revelá-los.
Atualmente, procuro pensar de modo mais racional e me conscientizar que estou diante de uma nova mãe, o que não me impede de sentir saudade da minha antiga mãe. Uma mulher que amava a família. Que nos deu uma educação pautada nos princípios da ética, do respeito e da responsabilidade. Que tomava as nossas lições. Que cozinhava uma polenta e um frango em molho com orégano, divinamente. Que fazia um pão dos deuses. E que fazia umas rapadurinhas de banana como ninguém.
Com o envelhecimento e a doença de meus pais, aprendi a controlar a minha ansiedade, mas percebi que não posso controlar a vida. Ela, simplesmente, é! Cabe a mim aceitá-la com resignação. Cada dia é um recomeço…
Zuleica Águeda Ferrari — 28/04/2022 — Clube da Escrita Afetuosa — Professora Ana Holanda — @anaolandaoficial — Desafio 4: Escrever um texto pensando de forma consciente em um começo.