Cara desconhecida

Amanda Acacio Rabachini
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readNov 13, 2021

Antigamente te observava cheia de curiosidade.

Você vestia expectativas altas, trabalhadas na alta costura da revista Capricho, edital de fim de ano, recortada e guardada com esmero na segunda gaveta da mesa de cabeceira.

Tinha apreço pelos papéis bordados com frases bonitas, feitas para estados de encantamento constantes que colecionava no mural metálico ao lado da cama de solteira no quartinho dos fundos. Quase um luxo.

Era assim que você vivia.

Usava música para chorar mares salgados do cotidiano vivido no lado leste do mapa da cidade cinza, onde a vida era como era. Cor de desespero, volume alto, baixa renda com rotina domesticada pela falta. De tudo.

Contudo, sua ideia de mundo era oposta. Havia sempre um céu rosa claro-outono para alumiar dias mais sombrios.

Buscava alterar a sensação de não pertencimento saboreando ilusões escolhidas na vitrine elegante dos mais favorecidos. Sabia exatamente qual era o cheiro do conforto que queria abraçar. E sabia também, quão pequenino era o balão imaginário que a levaria pra longe. Não caberia todo mundo, e com isso foi deixando pequenas memórias e afetos para trás.

Observei todas as vezes que sorriu dois mares espumantes apenas por experimentar o doce prazer de janelas amanhecendo amarelo esperança na sua sala.

Respirava tornados rítmicos suscetíveis ao amor enquanto de olhos fechados via possibilidades de enlarguecer desejos tão inefáveis quanto a realização da vida ao avesso que almejava.

Encontrou sapos pelos bosques de concreto por onde flutuava esperando reconhecer uma centelha qualquer que a fizesse acreditar em recomeços mais encantados.

Achou alguém numa fila. Alguém tão humano que parecia mágico. E era. Se viu numa história que passaria na sessão da tarde de algumas casas privilegiadas. Na sua passou.

Virou comédia romântica, levemente trágica porque sua vida nunca foi previsível. Sofreu alguns machucados que por reticências amorosas se curaram…. Fez três corações dotados de amabilidades profundas e se reconheceu nesse cotidiano colorido. Que não tinha volta.

Recolheu e se desfez dos recortes de vida perfeita que nunca se concretizariam.

Descobriu que vida real tinha belezas ocultas que a fizeram ver com os olhos dos olhos quanto o imperfeito tinha beleza também.

Cara desconhecida, ainda hoje te observo e aturdida me reconheço em cada página dessa coletânea amorosa que se propôs a detalhar e assustada, percebo que você sou eu.

#clubedaescrita

#desafio 001/nov

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