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Carta culinária 3 — do caderno das receitas afetuosas

Cláudia Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readOct 27, 2021

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Querida Cláudia,

Sei que chegou aos 50 anos com pouco alarde, no meio de uma pandemia, sem festa nem viagem. A casa se encheu de flores e mensagens e os amigos cantaram os parabéns na calçada. Você cuidou de receber as irmãs e os pais, sorriu para as fotos e alimentou a todos. A sua voz — centralizadora, maternal, cuidadosa — preencheu, como sempre, os espaços do lar.

No cardápio, a comida árabe: a berinjela que aprendeu a fazer aos 21, o pão pita e o hommus. A hortelã esmagada e presente nas carnes. Esses alimentos não fazem parte da tradição culinária da sua família, mas você pertence a eles desde que os conheceu. A vida é assim. Por mais que vivamos, sempre haverá algo desconhecido em nós. Como um segundo coração, que bate quando quer, talvez por não ser obrigado a manter o sangue pulsante, nem os sinais vitais ordeiros e obedientes.

Há uma certa liberdade nesse paladar que foge da rotina, que dá às papilas gustativas a oportunidade de sentir ondas doces, azedas, salgadas ou picantes. O amargo pressentido, mas adiado, seletivamente. Pois no mundo dos sabores — e só nele (?) — podemos controlar o que nos invade.

Na sua cozinha cinquentenária, você consegue também domar um pouco da ansiedade que lhe constitui e ver graça em não saber aonde a sua história vai dar. As suas mãos podem amanhecer solares, produtivas, mas também cansadas, preguiçosas. Nesse espaço, a mulher madura reconhece as imensidões que não cabem em suas vivências e é amiga do tempo, que trata de fazer com que isso não lhe doa muito. As contradições são aquecidas em fogo lento, sem pressa de resolver cardápios. Alguns ingredientes sempre lhe faltam na hora em que mais precisa deles, mas já não há desespero.

Desejo-lhe as melhores experiências gastronômicas hoje e sempre! Que você se alimente cada vez mais daquilo que nutre a sua alma, sem medo. Que o seu olhar se demore em texturas desconhecidas e a saliva fique à espera de novos sabores, formando um lago dentro da sua boca. Que nessa água você se banhe, pacificada, agradecida pelo encontro de uma pequena alegria, na soma de todos os instantes miúdos que chamamos de vida.

Feliz aniversário!

Com carinho,

Cláudia

Cláudia Figueiredo, 27/10/2021

Desafio # 3 - Outubro de 2021

Clube da Escrita Afetuosa Ana Holanda

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Cláudia Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa

Membro do Clube da Escrita da Ana Holanda. Busco nas palavras o céu de um novo lar.