Carta culinária 4 — do caderno das receitas afetuosas
Mãe,
Hoje eu quero fazer um pudim com você. Iremos separar os ovos, o leite condensado, o açúcar, o leite e o amido de milho. Faremos a calda primeiro, observando, juntas, a transmutação das coisas. Veremos o doce e branco açúcar se aquecer e se transformar em algo marrom, pegajoso e borbulhante. Um tanto incontrolável, assim como a vida, que nos pega no calor das nossas raivas, melando e grudando nos ambientes em que estamos. Se descuidamos mais um pouco, podemos ficar amargos, secos e duros. Cristalizados. Uma boa calda carrega em si um pouco do viver, com suas luzes e sombras.
Baterei à mão as claras em neve. Você dirá que aí está o segredo do seu pudim, no lento bater, na entrada do ar que tanto lhe faz falta na sua vida de agora, entre quatro paredes. Trataremos de fazer tudo pelo caminho mais difícil. Sei que gosta disso e não brigaremos, pois nosso tempo escorre rápido por entre os dedos, assim como a clara do ovo se desprega em dois segundos da gema desavisada.
Suspirarei, caçula conformada, e cuidarei de me concentrar na espuma branca, alvíssima, que criarei com a força das minhas mãos. Você já terá misturado os outros ingredientes com uma certa impaciência, natural de quem vive emoções descompassadas. Minha neve aerada receberá com cuidado a sua densa massa, incorporando-a com delicadeza. Parece ser pouco, eu sei, mas percebo que o lento verter dos meus gestos arejam e acalmam o que lhe pesa em espaços inacessíveis.
A forma de alumínio estará untada em caramelo brilhante e receberá o creme que finalizaremos a quatro mãos. Assaremos o nosso pudim em banho-maria e vigiaremos o forno em mais uma das esperas que aprendemos a compartilhar em silêncio. Quando tudo estiver terminado, contemplaremos a nossa sobremesa em seu mistério de plenitude e ausência. Os buracos como parte essencial do sabor que é oferecido. Um lembrete, talvez, de que seja possível doar algo doce ao mundo, apesar do muito que nos falta.
Beijos,
Com carinho,
Da sua filha que te ama,
Cláudia
Cláudia Figueiredo, 26/10/2021
Desafio #4 — Outubro de 2021
Clube da Escrita Afetuosa Ana Holanda