sobre a palavra lar

Julia B
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readApr 29, 2022

Faz mais de mês que não escrevo. Fui raptada por um senso de obrigação com minha nova versão provas, bater ponto, reclamar da louça, TV sempre ligada em algum diálogo que já sei de cor, mas me ajuda a dormir. Os últimos anos ensinaram que o mundo roda como bem entende, não espera a vertigem passar.

Eu ontem atropelei o café e dirigi chorando de um cansaço de perder meu sono mapeando a rota mais curta pra me encontrar nesse planeta. Antes dos 30 eu quero: ganhar em dólar, viajar o mundo, sarar as marcas da minha história, conseguir perdoar. Mais do que tudo, meu deus, conseguir me perdoar. Porque até os 35 eu vou ser mãe e a Nayyirah me ensinou num poema que se não colocar a cura na lista, na lista de compras, em todas as listas, vou ensinar pro nosso bebê a mesma química que sequestrou os meus olhos e coração quando eu tinha quatro anos.

Nos últimos dias tenho olhado panfletos cheios de promessas de onde, eu sei, um dia a gente vai morar. Viva com elegância, conforto, dívidas quitadas, relações reparadas, paz espiritual. Tudo isso com vista pro mar. E lembrei de março de 2020 quando a gente achava que seriam só duas semanas que viraram meses, e o nosso mundo inteiro coube dentro de 50 metros, sem vista, que já eram muito mas ainda eram muito pouco perto do tamanho de tudo que ficou lá fora.

Dois anos. Sem saber se seriam mais dois. Sem saber se seria pra sempre. E a gente sobreviveu. À miocardite que vez em quando dá susto, a esse aperto no peito, às mesmas más notícias repetindo repetindo repetindo. Ao tédio. Por que não tem ninguém falando disso?

Nesses dias a minha respiração tá mais curta. Você que repara, me para entre uma reunião e outra e conta comigo, assim , um, dois, três, quatro. Agora solta. Você sempre repara. E eu tenho uma certeza bem viva de que el amor, más que un te quiero, es un te cuido.

É tanta correria pra chegar a ser alguém, que a gente esquece que já é. Pra mim, você já é. Desde aquele março me pergunto se foi mandinga, conjunção estelar ou a moeda que joguei da ponte que fez a gente se esbarrar bem em tempo do fim do mundo.

Nesses últimos dias, tenho divagado um tanto e inventado definições pras minhas palavras favoritas. Fica com essa daqui: amor é quem a gente leva junto pra enfrentar o apocalipse. Acredita que, por mim, a gente bem que poderia estar atirando em zumbis, escondidos num bunker, sobrevivendo de peixes radioativos caçados com nossas próprias mãos.

Mas não hoje. Eu tô tão cansada. Você dorme tão bonito. O sol nem quis dar as caras e no relógio são só oito horas, amor, ainda dá tempo de acordar.

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